Valor Econômico

Por Taís Hirata — De São Paulo
22/10/2019

Empréstimos para projetos de saneamento são concentrados em estatais de SP, RJ e PR

Nos últimos dez anos, apenas três Estados ficaram com 60% de todos os recursos da Caixa e do BNDES para projetos de saneamento básico. Juntos, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná receberam R$ 11,8 bilhões em financiamentos desde 2009, segundo dados dos dois bancos públicos, que têm sido os principais financiadores do setor. No total, foram desembolsados R$ 19,5 bilhões.

A maior parte desses recursos ficaram com as estaduais: Sabesp (São Paulo), Cedae (Rio de Janeiro) e Sanepar (Paraná) que receberam R$ 9,97 bilhões em empréstimos – 51% do total do período.

A concentração reflete um problema histórico: a incapacidade das estatais menores de formular projetos e de garantir padrões mínimos, tanto financeiros quanto de governança, afirmam especialistas ouvidos pelo Valor.

“Poucas empresas públicas conseguem acessar os financiamentos por conta de suas limitações de endividamento e de responsabilidade fiscal dos Estados. No caso das cidades operadas pela própria prefeitura, a dificuldade é maior ainda. Outro motivo é que, para pegar os recursos, é preciso ter bons projetos. Isso já é um gargalo”, diz Édison Carlos, presidenteexecutivo do Instituto Trata Brasil.

Além das limitações das próprias companhias, entraves burocráticos dificultaram o acesso aos recursos, afirma Álvaro Menezes, diretor da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) e autor de estudos sobre o uso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para o saneamento.

“A tomada de crédito envolve uma sequência de etapas, com exigências que muitas vezes dependem do Estado ou do município, nos casos em que o governo entra como garantidor. Um processo que dura 14 meses para uma empresa privada pode levar até 27 meses para a estatal. E muitas não conseguem avançar”, diz.

O resultado é que as linhas de financiamento acabam sendo usadas pelas companhias mais estruturadas, que são justamente aquelas com mais recursos para bancar sua operação – por meio de investimentos privados ou pela própria estrutura tarifária, afirma Carlos.

No Brasil, quase metade da população não tem acesso a coleta de esgoto – 47,60%, entre aqueles que moram em domicílios, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) de 2017, os mais recentes divulgados.

Além do Distrito Federal, apenas quatro Estados estão acima dessa média nacional: São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro, justamente os que mais conseguiram acesso aos financiamentos federais.

As companhias públicas reconhecem suas limitações de governança, financeiras e mesmo falta de segurança jurídica em muitos contratos, avalia Marcus Vinícius Neves, presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe).

No entanto, ele diz que as companhias “têm feito seu dever de casa” e estão se preparando para ampliar seu acesso não apenas ao crédito tradicional dos bancos públicos, como ao mercado de capitais, com a emissão de debêntures.

A modalidade de financiamento tem ganhado peso no setor, mas ainda é muito restrita. Hoje, o acesso ao mercado de capitais é ainda mais concentrado que os recursos dos bancos públicos, destaca Laura Bedeschi, chefe do departamento de saneamento ambiental do BNDES.

Desde 2017, três grupos emitiram debêntures: Sabesp, Copasa (Minas Gerais) e a Aegea, que é privada. Além disso, os prazos de pagamento são, em geral, curtos, de três a sete anos, diz ela.

“Investimentos em esgoto precisam de prazos mais longos. O BNDES tem trabalhado para isso, queremos que empresas que não acessam o mercado passem a acessar, e queremos testar prazos mais longos para essas debêntures. Mas, para chegarmos a um prazo de 24 anos, ainda estamos longe”, afirma.

O banco de fomento tem buscado descentralizar seus financiamentos, segundo Laura. Nos últimos dois anos, o banco fez mudanças para tentar tornar a tomada de crédito mais acessível: antes, eram abertos um ou dois processos por ano, mas muitas empresas não conseguiam se preparar a tempo e acabavam perdendo a janela. “Agora, o processo é contínuo. Com isso, já começamos a ver uma desconcentração nos empréstimos.”

Além disso, a instituição tem trabalhado para estruturar projetos, outro gargalo das estatais. Atualmente, o BNDES realiza estudos técnicos para sete Estados, que deverão gerar processos de desestatização – os primeiros leilões deverão vir em 2020, diz ela. “Além disso, está vindo uma nova leva de parcerias com Estados para os quais vamos estruturar projetos”, afirma.

Procurada, a Caixa afirmou, em nota, que os processos seletivos para crédito são disponibilizados em iguais condições a todos, mas que é necessário que o tomador “possua conceito de risco de crédito suficiente, bem como capacidade de pagamento e suficiência de garantias, compatíveis com o valor do empréstimo pleiteado”.

Além disso, o banco diz que “entende que o mercado de capitais é necessário para cumprir uma lacuna histórica não preenchida com os financiamentos de longo prazo tradicionais e também uma grande oportunidade para diversificar e ampliar seu rol de produtos e serviço”. Para Menezes, da Abes, as recentes iniciativas federais são importantes, mas há outras ações que a União poderia adotar para estimular a universalização em regiões menos atrativas ao setor privado. Uma das ações sugeridas é a criação de um fundo garantidor, para ajudar empresas estaduais a estruturar seus financiamentos.

“O governo federal precisa participar mais do saneamento. Tem cidades que, sem apoio da União, não vão conseguir avançar, porque nem todas serão operadas por empresas privadas.”