Valor Econômico

30/12/2020

Por Talita Moreira — De São Paulo

Entrevista com o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães

Retomada compensa término do auxílio, afirma Guimarães

Demais programas, como o Bolsa Família, passarão a ser pagos por meio do banco digital da Caixa

Depois de nove meses e R$ 298 bilhões em pagamentos, o auxílio emergencial chegou ao fim ontem, deixando em aberto como a economia reagirá sem esse aditivo. À frente da operação, que atendeu 67,9 milhões de pessoas, o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, descarta um baque no nível de atividade. “Não vejo um impacto relevante porque já vejo uma retomada da economia e de empregos.”

De acordo com o executivo, o setor imobiliário tem desempenho recorde, o agronegócio está muito aquecido e a indústria já mostra bons indicadores, o que deve atenuar o impacto do fim do programa. Ao mesmo tempo, Guimarães afirma que a dinâmica da economia está muito diferente agora e o próprio uso do auxílio mostra isso. “No comecinho, foi para comprar comida e remédio. Depois, acabou o tijolo e foi muito por conta disso. No final, eu vi as pessoas usando mais para fazer investimento.”

Para Guimarães, o programa deixou como legado um banco digital com mais de 100 milhões de contas. Essa estrutura será usada agora para pagar outros benefícios sociais, como o Bolsa Família, num processo que será implantado até março. Também tornará viável uma operação de microfinanças. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida pelo executivo ao Valor por telefone:

Valor: O pagamento do auxílio emergencial chegou ao fim ontem. Como avalia a operação?

Pedro Guimarães: Foi uma coisa transformacional. A gente fez mais de 500 milhões de pagamentos, quase R$ 300 bilhões. Pagamos 67,9 milhões de pessoas. Em alguns meses, 90 milhões porque fizemos antecipação do FGTS, pagamos o BEm [Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda] etc. Nunca ninguém fez isso e espero que não faça porque só numa pandemia há necessidade. Mas o legado é muito importante. É o fato de que a gente tem um banco digital que vai beneficiar dezenas de milhões de pessoas no longo prazo. Todos os 35 milhões de brasileiros que recebem algum tipo de benefício social pela Caixa passarão a receber no Caixa Tem. Vai se aproximar de 110 milhões [de contas abertas no aplicativo], já tem mais de 100 milhões. O banco digital é um meio único de relacionamento com a população mais carente.

Valor: O sr. já disse anteriormente que a intenção é abrir o capital do banco digital…

Guimarães: Não tenho conforto de fechar joint-venture de tecnologia. Para cada 1 milhão, uma dá certo. Quando a empresa é listada, com selo de qualidade, cem mil acionistas, isso é controlado de forma diferente. A abertura de capital vem muito para manter o banco digital ‘up to date’.

Valor: Que impacto espera para a economia com o fim do auxílio?

Guimarães: Até o dia 27 de janeiro continua tendo recebimento em dinheiro. Já depositamos [a última parcela] e existem pessoas que já estão usando, mas tem outras que só vão receber na boca do caixa [para sacar em dinheiro, há um cronograma]. Já há um crescimento de fato. A economia hoje é totalmente diferente da de abril ou maio. Em 160 anos de Caixa, batemos recorde de crédito imobiliário neste ano. O setor vive um crescimento fortíssimo por causa da oferta de crédito, e estimamos mais 20% no ano que vem. É um segmento crucial para emprego e renda. Além disso, estamos no Pronampe [o programa para micro e pequenas empresas]. Até amanhã, devemos fazer mais R$ 5 bilhões nessa terceira rodada, e o uso da linha está muito diferente do que cinco meses atrás. Ali, era para evitar o fechamento, pagar conta em atraso, salário. Hoje, é para expansão. O setor agropecuário está bombando. Tem uma indústria com o melhor dado desde 2010. Tem setores de serviços que sofreram muito. Mas, do ponto de vista econômico, não se compara com abril e maio.

Valor: Sem o auxílio, a inadimplência vai subir?

Guimarães: A gente tinha uma expectativa de PDD [provisão para devedores duvidosos] que não se verificou. Chegamos a pausar 2,6 milhões de contratos de crédito imobiliário e 98% voltaram a pagar. O auxílio veio num momento de ruptura. Só que a gente está em dezembro, indo para janeiro. Qualquer coisa relativa ao programa é uma definição do governo. Mas não vejo um impacto relevante porque já vejo uma retomada da economia e de empregos. Na Caixa, o nível de perdas é um dos mais baixos da história. Em seguros, nunca crescemos tanto. Óbvio que vão existir problemas, mas um dos focos é a criação de um programa de microfinanças que vai atingir 10 milhões de pessoas. Em um mês? Não. Até porque a gente não quer dar a ideia de que é um novo auxílio. Esse é para quem tem condições de pagar. Para quem não tem, é via transferência de renda.

Valor: Vai haver uma ampliação do Bolsa Família ou será criado outro programa?

Guimarães: Não estou nessa discussão. Isso é uma questão do Ministério da Cidadania e quem decide é o presidente. O que posso dizer é que a gente está numa economia muito diferente e houve também um processo de transferência de renda que muita gente usou para melhorar moradia e condições de vida. Esse dinheiro foi investido. No comecinho, foi para comida e remédio. Depois, até acabou o tijolo e foi muito por conta disso. No final, vi as pessoas usando mais para fazer investimento.

Valor: Como funcionará o microcrédito oferecido pela Caixa?

Guimarães: Não vou mais falar de microcrédito, e sim de microfinanças. A gente vai fazer um programa mais abrangente. Vai ter o nome de Crédito Caixa Tem. Nosso objetivo é de 30 milhões de pessoas até o fim de 2022 e pelo menos 10 milhões até o fim do ano que vem. Vai vir exclusivamente pelo canal digital, porque no físico não é rentável. O banco digital já está com dois produtos-chave. Um deles é o pagamento de benefício social, que a pessoa vai poder receber pelo celular ou continuar indo na agência. O outro produto é de microfinanças.

Valor: Por que microfinanças e não microcrédito?

Guimarães: O microcrédito tem critérios do Banco Central muito restritos. Queremos ampliar. A gente quer fazer para os MEIs, para os que fazem parte da cadeia, por exemplo, de franquias. Temos uma base de dados que ninguém tem, criada com o auxílio e com parcerias como a do Sebrae. Já fizemos R$ 2,5 bilhões com o Fampe [Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas]. O digital reduz de forma tão brutal meu custo que me permite aprovar clientes que eu não conseguiria nas agências. Não poderia fazer um crédito de R$ 300 na agência, mas no digital eu posso.

Valor: Quando começa?

Guimarães: Da metade para o final de março. Mas a gente quer fazer com tranquilidade. Já temos alguns pilotos.

Valor: Qual a estratégia para transformar os beneficiários do auxílio em clientes do banco digital?

Guimarães: Nosso objetivo são 50 milhões [de clientes]. Desses, 35 milhões vão receber beneficio social, por baixo 10 milhões vão entrar no microcrédito e mais 5 milhões vêm da habitação. A Caixa já é o maior no Pix, com 25 milhões de CPFs cadastrados. Mais da metade veio pelo Caixa Tem. É uma demonstração de que esses clientes vieram para ficar. Quem vai ter um banco digital com 25 mil pontos de venda? Isso é um de nossos pontos mais fortes. Relacionamento com empresa de saneamento e cliente de imobiliário do SBPE será feito via Caixa. Não posso zerar a tarifa de todo mundo. O que for banco social vai para o digital, que me permite reduzir R$ 1 bilhão de custo. Estamos devolvendo mais de cem prédios, vou precisar de menos papel-moeda, menos ATMs.

Valor: A Caixa adiou duas vezes, neste ano, o IPO da Caixa Seguridade. Quando será retomado?

Guimarães: Amanhã [hoje] está previsto o recebimento de R$ 7 bilhões da joint venture [com a CNP Assurances ]. No dia 4 de janeiro, oficializa com a Tokyo Marine. Então, já temos os dois maiores para começar o ano.

Valor: Esse dinheiro entra no caixa imediatamente?

Guimarães: Já vai para o patrimônio inclusive. Um em 2020 ainda e outro em 2021. Vai fazer a mesma coisa com a Icatu, com a Tempo e depois com a CNP também. Sã o cinco joint-ventures, fora a nossa corretora e o ‘bid’ da co-corretora. Resolve isso e o IPO, para março, já está 100%. Era a única questão de incerteza que o mercado tinha. Quando a gente for, vai estar tudo funcionando.