Portal do Saneamento Básico

28/01/2019

O presente Estudo desenvolvido pela GO Associados tem como objetivo avaliar casos internacionais nos quais a gestão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário foi remunicipalizada após um período de gestão privada entender os motivos que levaram à decisão do poder público, bem como sugerir possíveis fatores que possam mitigar os riscos de eventuais decisões de retomada dos serviços.

Segundo a publicação “Our public water future – The global experience with remunicipalisation”, teria havido 208 casos de remunicipalização, englobando 235 municípios, entre os anos de 2000 e 2015, incluindo os municípios que foram objeto deste estudo.

Uma análise mais cuidadosa desses dados mostra que por volta de 40% dos casos de remunicipalização ocorreram após uma decisão unilateral de encerrar os contratos por parte do poder público, enquanto em 44,7% dos casos, o contrato com a iniciativa privada foi cumprido integralmente e, após cumprir seu objetivo, não foi renovado. Ainda há quatro casos nos quais o operador privado vendeu sua participação para o poder público, sete nos quais o prestador se retirou e 16 nos quais existe a intenção de remunicipalização, ainda não executada, além de 11 casos sem informação disponível, conforme o quadro abaixo.

Setor de Saneamento Básico na França

O saneamento básico na França possui modelos institucional e regulatório semelhante ao brasileiro. A responsabilidade pela prestação dos serviços de distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto é dos municípios. O país abriga dois dos maiores grupos privados do setor, Veolia e Suez Envinroment.

A atuação privada no setor de saneamento francês se dá por meio de contratos de concessão, aluguel de ativos ou auxílio à gestão, atrelados a metas (contratos de eficiência), nos quais os municípios mantêm a propriedade dos ativos, delegando apenas a operação ao parceiro privado.

Na França foi realizada a primeira concessão dos serviços de água da história, no ano de 1853, quando a companhia privada Générale des Eaux recebeu a exclusividade do fornecimento de água no município de Lyon por um período de 99 anos.

A França possui mais de 36 mil municípios, alguns com menos de 100 habitantes. Para garantir a eficiência da prestação dos serviços de água e esgoto, grupos de municípios de pequeno porte recorrem à gestão integrada dos serviços (“Intercommunalité”). Cerca de dois terços dos franceses são atendidos por companhias privadas, como Veolia, Suez e SAUR.

Histórico da operação de água e esgoto em Paris

No ano de 1860, a capital francesa realizou a concessão do serviço de distribuição de água para a Compaigne Générale por um período de 50 anos, seguindo o movimento nacional de concessões dos serviços. Após estes 50 anos de operação privada, em 1910, e seguindo uma nova onda de nacionalização do saneamento básico, o município não renovou a concessão e retomou a operação da distribuição de água.

A partir dos anos 60, o setor de saneamento francês passou por forte pressão para se adequar a padrões ambientais mais rigorosos, incluindo a universalização do tratamento do esgoto, que demandou grandes investimentos no setor. Com isso, diversos municípios concederam seus serviços de água e esgoto para o setor privado, que cresceu de 32% de participação privada em 1932 para 80% em 2000.

O município de Paris, seguindo esta tendência nacional, realizou no ano de 1985 a concessão dos serviços de água e esgoto em duas áreas, divididos pelo rio Sena: a área esquerda operada (rive gauche) pela companhia Lyonnaise des Eaux e a direita (rive droite) pela Compagnie Générale por um período de 25 anos.

Durante o período da concessão, os serviços passaram por grande modernização, substituição de tubulações de chumbo, melhora da qualidade da água e redução das perdas de 24% para 4%.

Remunicipalização e Resultados

No ano de 2010, o prazo de ambos os contratos de concessão dos serviços de água e esgoto em Paris se encerrou. O então prefeito reeleito, Bertrand Delanoë (Parti Socialiste – PS) decidiu não renovar os contratos nem realizar novas licitações para a concessão dos serviços. Uma nova companhia municipal, Eau de Paris, foi criada e atualmente opera os serviços na cidade.

Uma das bandeiras do processo de remunicipalização foi a redução das tarifas de água. Em Paris, as tarifas foram reduzidas em 8% após o fim dos contratos de concessão. Essa redução é creditada pelo município e pela nova empresa ao menor custo de capital da companhia pública, que reinveste todo o seu lucro na operação, sem distribuição de dividendos. Apesar da vantagem de curto prazo proveniente da redução das tarifas de água, é possível perceber que estas foram acompanhadas de uma redução significativa nos investimentos pela companhia pública Eau de Paris.

No ano de 2013, a empresa municipal investiu € 20,00/habitante, cerca de um terço da média nacional, e substituiu 0,2% da rede de água e esgoto. Mantida essa média, a troca da extensão completa da rede ocorreria em 500 anos, muito acima da vida útil da infraestrutura, que fica por volta de 50 anos para os equipamentos mais duradouros. Entre 2010 e 2013 o índice de perdas aumentou para 8%.

Em primeiro lugar, é possível concluir que o término da concessão dos serviços de água e esgoto em Paris se deu pelo final do período contratual regulamentar, não por falta de atendimento de metas ou questões institucionais e regulatórias.

Em segundo lugar, o maior motivador para a não renovação da concessão dos serviços foi tarifário: o município adotou como política reduzir a tarifa para aos usuários.

No entanto, dois fatores devem ser levados em conta para essa redução tarifária: a infraestrutura para a prestação dos serviços já tinha sido construída ao longo dos contratos privados. Desta forma, em um novo período de prestação dos serviços, é natural que haja menores investimentos em expansão de redes e construção de novas estações de produção de água e tratamento de esgoto. E a gestão pública que assumiu os serviços reduziu o nível de manutenção dos sistemas (fato que fica evidente frente à evolução das perdas de água nas tubulações). Esses dois fatores levam naturalmente a menores tarifas – independentemente da forma institucional do prestador dos serviços.

Em terceiro lugar, a falta de licitação dos serviços não deixou claro se a redução tarifária poderia ser atingida por prestadores privados. Ou seja, se as maiores tarifas até o ano de 2010 apenas refletiram a necessidade de amortizar os investimentos realizados para universalizar os serviços para os usuários. Como não há uma agência de regulação, não foi possível confirmar que o atual nível de investimento pelo prestador municipal será capaz de manter a qualidade dos serviços no médio e longo prazo.

Setor de saneamento básico na Argentina

O saneamento básico na Argentina possui prestação de serviços locais, em sua maioria por companhias municipais ou prestação direta de serviços por departamentos municipais. A região metropolitana de Buenos Aires, capital do país e da região homônima, era atendida antes do processo de concessão dos anos 1990 pela Companhia Nacional Obras Sanitarias de la Nación (OSN).

Ao desenhar o modelo institucional para a concessão dos serviços da Região Metropolitana de Buenos Aires, o Governo Federal argentino decidiu pela adoção de um modelo inspirado no francês, evitando a venda dos ativos ou do direito de exploração dos serviços e realizando concessão por tempo determinado.

Histórico da operação de água e esgoto em Buenos Aires

No início da década de 1990, enquanto o país tentava se recuperar de uma grave crise fiscal e política no governo do presidente Carlos Menem, a venda de importantes ativos de infraestrutura pública parecia uma alternativa para a reequilibrar as contas públicas, garantindo ao mesmo tempo recursos para o Estado e melhora na infraestrutura.

A proposta apresentada pelo Governo Federal foi de aplicar no saneamento básico de Buenos Aires uma estratégia semelhante à dos setores de energia e telecomunicações, com a diferença básica de optar pela concessão dos serviços, não pela venda definitiva dos ativos.

Estação de Tratamento de Água, General San Martín, da Agua y Saneamientos Argentinos SA (Aysa) em Buenos Aires.

Antes da concessão, a Região Metropolitana de Buenos Aires apresentava falhas na cobertura da distribuição de água, com apenas 70% da população ligada à rede pública.

Parcela significativa da população morava em “Villas”, conglomerados irregulares e sem acesso a serviços públicos. Além disso, a coleta de esgoto não passava de 58% e não havia tratamento.

A companhia federal possuía um índice de perdas de água de cerca de 45%, superior à média da América Latina (Quadro 4), além de 20% de inadimplência. Devido à falta de hidrometração, o consumo per capita de água era de 350 litros por habitante por dia, valor considerado alto em comparação com outros municípios argentinos e latino- americanos (Quadro 3), e muito superior ao consumo mínimo indicado pela Organização das Nações Unidas, de 110 litros por habitante por dia.

Em 1993, foi realizada a licitação para concessão dos serviços, no modelo de menor tarifa. O consórcio liderado por Lyonnaise des Eaux e Águas de Barcelona se sagrou vencedor com uma redução tarifária de 26,9%.

O primeiro desafio enfrentado no processo de concessão foi a definição do modelo regulatório. Com a necessidade de satisfazer interesses do governo municipal (município de Buenos Aires), estadual (província de Buenos Aires) e federal, foi criada uma agência tripartite (Ente Tripartito de Obras y Servicios Sanitarios, ETOSS), com dois representantes de cada instância e liderança rotativa de um ano.

Esta agência reguladora, no entanto, foi preterida do processo de definição tarifária no ano de 1997, quando a então Ministra do Meio Ambiente, Maria Julia Alsogaray, assinou o Decreto 149, com o objetivo de realizar negociações contratuais diretas entre o Governo Federal e a concessionária Águas Argentinas.

Esta foi a segunda alteração contratual nos quatro anos iniciais da concessão, que contou com aumento de tarifas, aceleração de investimentos e alterações na estrutura tarifária no período.

No ano de 1994, a concessionária Águas Argentinas tomou junto ao IFC um empréstimo de U$ 172 milhões. A entidade adquiriu também 5% das ações da companhia. O contrato de empréstimo possuía um limite de dívida/equity de 1,9 vezes, considerado estrutura ideal para a operação.

No ano de 1995, foi necessário um novo empréstimo de U$ 150 milhões junto a um grupo de bancos privados, liderado pelo IFC, além de um empréstimo de U$ 70 milhões junto ao Banco Europeu de Investimento. Com isso, a relação dívida/equity chegou a 2,37 vezes no final de 1996.

A renegociação contratual direta com o Ministério do Meio Ambiente em 1997 foi necessária, em parte pelo não atingimento das metas contratuais: apesar de ultrapassar os 81% de distribuição de água, a concessionária coletava à época 61% do esgoto gerado, não os 64% previsto no contrato, e não tratava nenhum esgoto, quando deveria tratar no mínimo 2%.

Em 1999, a Águas Argentinas contratou novo empréstimo de U$ 300 milhões, aumentando seu endividamento. No total, a concessionária possuía U$ 700 milhões em dívidas em moeda externa no ano de 2002, quando a paridade entre Peso e Dólar foi derrubada. Com o início da livre flutuação cambial, a empresa cobrou a obrigação contratual do Banco Central Argentino, de fornecer dólares na antiga paridade 1:1, porém, após recusa do Banco Central, congelou seu plano de investimentos.

Em 2006, o contrato foi cancelado pelo Governo Federal e os serviços passaram a ser prestados pela empresa pública Agua y Saneamientos Argentinos (AySA). Até o momento, os antigos investidores buscam compensação da ordem de US$ 1,2 bilhão em danos em cortes arbitrais internacionais.

Remunicipalização e Resultados

Entre 2006 e 2012, a prestação de serviços pela companhia pública que sucedeu a concessionária privada foi baseada em investimentos do orçamento público, que permitiram a construção da primeira estação de tratamento de grande porte no município de Buenos Aires. Apesar disso, a companhia apresenta grande déficit, as receitas são insuficientes para cobrir os custos de pessoal, em parte pelo congelamento da tarifa.

O insucesso da concessão dos serviços em Buenos Aires pode ser explicado por vários fatores. Em primeiro lugar, o modelo de concessão teve falhas, entre elas a cobrança de uma taxa de instalação de novos usuários, em sua maioria de baixa renda, irreal, e que era necessária para o equilíbrio do contrato.

Em segundo lugar, o desenho regulatório apresentava muita complexidade organizacional e de interesses, atendendo a três níveis diferentes de governo, com pouca experiência e capacitação técnica. Após menos de quatro anos da concessão, a agência reguladora foi deixada de lado em favor de negociações diretas entre o governo federal e a concessionária. Isso comprometeu a premissa de uma regulação externa e independente.

Em terceiro lugar, ambos os lados incorreram em descumprimentos contratuais. Por um lado, a concessionária não atingiu as metas contratuais de cobertura de serviços (o Quadro 5 apresenta as metas contratuais para o ano de 2002, momento do congelamento de investimentos, bem como a situação real alcançada pela concessionária). Por outro, o governo não foi capaz de reajustar as tarifas após a desvalorização do Peso argentino frente ao Dólar, contrariando compromisso prévio neste sentido.

Por fim, a situação macroeconômica argentina, agravada pelo alto endividamento da concessionária e pelo descumprimento contratual da garantia da dívida pelo governo argentino, impossibilitaram a continuidade da operação.

Conclusões

A retomada da operação dos serviços de saneamento básico não aparenta ser uma tendência global: com um grande número de municípios operados pelo menos parcialmente pela iniciativa privada, os casos de remunicipalização somam uma média de 23 por ano entre 2005 e 2015, a maior parte dos quais são contratos que cumprem todo seu ciclo de vida e simplesmente não são renovados.

Dito isso, existem alguns fatores que contribuem para casos de insucesso de concessões de saneamento básico. Os principais pontos apresentados nos estudos são:

Política de preços:

– A definição de preços nos serviços de infraestrutura deve remunerar de forma satisfatória os custos e o investimento realizado, independentemente do tipo de prestador de serviço. A prática de tarifas abaixo do custo de operação é uma prática populista que onera o orçamento público, como ocorreu no caso de Buenos Aires, ou reduz a capacidade de investimento, como no caso de Paris.

Desenho contratual ruim:

– Falta de informação sobre os ativos: muitos operadores de saneamento, especialmente públicos, não possuem inventário detalhado de seus ativos e de sua situação. Com isso, os contratos de concessão se tornam insustentáveis por informações prévias imperfeitas. Gana constituiu exemplo neste sentido. Uma avaliação mais profunda antes do processo de concessão pode minimizar o risco para o investidor e para o município.

– Incentivos licitatórios desalinhados com o interesse público: diversas licitações focam demasiado na redução dos custos, impondo metas irrealistas que não garantem a sustentabilidade dos contratos. As metas tarifárias estabelecidas para Huston não eram realistas e lavaram a serviços de qualidade inadequada e, em última instância, ao fim do contrato.

Regulação:

– Falta de independência regulatória: a regulação dos serviços de saneamento depende da mediação de diversos interesses muitas vezes conflitantes. A garantia da independência regulatória é fundamental para a estabilidade dos serviços. A eliminação da agência reguladora e o diálogo direto entre o governo e a concessionária não foi positivo na Argentina.

– Assimetria de informação: muitas vezes por falta de recursos ou capacitação, o regulador não possui acesso a todas as informações necessárias para a devida fiscalização dos serviços. É fundamental que além de determinar as metas operacionais, os contratos incluam a obrigação de compartilhamento de informações, bem como eventual auditoria dos dados apresentados.

Opinião pública:

A transparência dos objetivos, metas e dados operacionais e financeiros das concessionárias dos serviços públicos é fundamental para renovar a “concessão social” dos serviços na visão da opinião pública. A venda de parte das ações da companhia de saneamento de Berlim com contratos sigilosos fez com que a população demandasse a retomada dos serviços, mesmo que sua operação fosse adequada.

Cumpre esclarecer, ainda, que há grandes diferenças entre países, seja no que diz respeito aos atuais níveis de atendimento, seja no que tange à forma de gestão do Poder Público. Em outras palavras, as amarras e regras institucionais de cada país devem ser levadas em consideração para análise dos casos de remunicipalização. Da mesma forma, é fundamental comparar os índices de cobertura e velocidade na realização de investimentos para que as comparações possam ser feitas.

Acesso o Estudo na Íntegra: Parecer remunicipalização saneamento

Referência: GO Associados em âmbito do Grupo de Economia da Infraestrutura & Soluções

Gheorge Patrick Iwaki – gheorge@tratamentodeagua.com.br

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