Valor Econômico
31/03/2020

O contraste entre o silêncio das ruas e praças da Europa e a realidade pungente e tumultuosa que se vive em muitos dos seus hospitais é dilacerante. A COVID¬ 19 paralisou não só a Europa, mas toda a população a nível mundial. É já evidente que esta pandemia redefinirá o nosso mundo. De que modo exatamente, vai depender das escolhas que fizermos hoje.

O coronavírus deverá ser encarado como o inimigo comum do mundo. Embora não se trate de uma guerra, é necessário mobilizar recursos como se de uma guerra se tratasse.

No entanto, em momentos de crise, o nosso instinto é o de nos voltarmos para dentro e de agir cada um por si. Embora seja compreensível, esta atitude é contraproducente. Agir de forma isolada garante apenas que a batalha se prolongará por mais tempo e que os custos humanos e económicos serão mais elevados. Embora o inimigo tenha desencadeado reflexos nacionalistas, apenas o poderemos derrotar mediante uma coordenação transfronteiras – dentro e fora da Europa.

Precisamos de uma abordagem internacional comum para a pandemia e para prestar assistência às pessoas mais vulneráveis, nomeadamente as que se encontram em países em desenvolvimento e em zonas de conflito. Salientei este ponto em debates recentes com os ministros dos Negócios Estrangeiros do G7 e muitos outros. A União Europeia tem de fazer – e fará – parte deste esforço.

Chegou o momento de mostrar que “solidariedade” não é uma palavra vazia. Felizmente, essa solidariedade está já a ser demonstrada na Europa, com a França e a Áustria a enviarem mais de três milhões de máscaras para Itália e a Alemanha a aceitar e a tratar doentes provenientes de França e Itália. Após uma primeira fase de decisões nacionais divergentes, estamos agora a entrar numa fase de convergência em que a UE desempenha uma papel central.

Pela sua parte, a UE está a acelerar o ritmo das suas decisões no que respeita à facilitação dos procedimentos de contratação conjunta para a aquisição de equipamento médico vital, a um impulso econômico conjunto e a esforços coordenados a nível consular, a fim de repatriar os cidadãos da UE que se encontram retidos. Na sequência de uma reunião virtual do Conselho Europeu, os dirigentes da UE concordaram em intensificar os seus esforços conjuntos, nomeadamente desenvolvendo um sistema europeu de gestão de crises e uma estratégia conjunta de gestão do surto de coronavírus.

A crise provocada pela COVID¬ 19 não constitui uma batalha entre países ou sistemas. Ao longo das diferentes fases da pandemia, tem havido uma assistência recíproca entre a Europa, a China e outras regiões, numa demonstração de apoio mútuo e solidariedade. A UE apoiou a China quando o surto começou no início do ano e agora é a China que envia equipamento e médicos para ajudar os países afetados em todo o mundo.

Estes são exemplos concretos de solidariedade e cooperação a nível mundial que têm de passar a ser a norma. Podemos pensar na COVID¬ 19 como um fator de aceleração da história. Independentemente das mudanças que nos esperam, a UE tem de continuar a ser um elemento unificador, promovendo esforços conjuntos com a China e os Estados Unidos, de modo a combater a pandemia e as suas consequências. Só quando estas três potências avançarem na mesma direção, é que o G20 e as Nações Unidas poderão fazer uma grande diferença.

Para além da coordenação internacional entre os governos, a cooperação entre cientistas, economistas e decisores políticos também tem de ser reforçada. Durante a crise financeira de 2008, o G20 desempenhou um papel decisivo no resgate da economia mundial quando esta entrou em queda livre. Mais uma vez, verifica¬ se que há uma necessidade urgente de liderança a nível mundial nestes domínios.

Existem quatro prioridades principais no que respeita à cooperação mundial. Em primeiro lugar, temos de pôr recursos em comum para produzir novos tratamentos e uma vacina, que deverão ser considerados bens públicos mundiais. Em segundo lugar, é necessário limitar os prejuízos económicos mediante a coordenação das medidas de estímulo orçamental e monetário e proteger o comércio mundial de mercadorias. Em terceiro lugar, devemos planear a reabertura das fronteiras de forma coordenada quando as autoridades de saúde derem luz verde nesse sentido. Por último, temos de cooperar no combate às campanhas de desinformação.

Os resultados da recente cimeira virtual do G20 apontam nesta direção geral. Contudo, as iniciativas mundiais e multilaterais terão de ser apoiadas e executadas na íntegra nos dias e semanas que se avizinham.

À medida que o vírus se propaga a nível mundial, é necessário prestar especial atenção ao seu impacto crescente para os países frágeis, em que ameaça exacerbar as crises de segurança existentes. Na Síria, no Iémen, em Gaza e no Afeganistão, milhões de pessoas já sofreram ao longo de anos de conflito. Imagine¬ se o que aconteceria se o coronavírus se propagasse aos campos de refugiados da região, onde o saneamento e os serviços de saúde já estão sobrecarregados e o pessoal que presta ajuda humanitária já tem dificuldade em encaminhar essa ajuda.

Depois há também o caso de África, que se reveste da maior importância. Devido à epidemia de ébola em 2014¬ 2016 e a outros surtos, os países africanos adquiriram alguma experiência de que a Europa carece nesta crise. No entanto, os sistemas de saúde nesse continente continuam a ser, de um modo geral, fracos e o número de pessoas infetadas está a aumentar.

Em muitos países em desenvolvimento, as pessoas não têm outra alternativa senão continuar a sair à rua todos os dias e viver da economia informal. Ainda pior é o fato de a lavagem das mãos e o afastamento social se tornarem muito mais difíceis quando a água corrente nem sempre se encontra disponível e as famílias tendem a viver em espaços exíguos.

Trata¬ se de uma luta que, para ser ganha, necessitará de financiamento. Os países em desenvolvimento dependem essencialmente de três fontes de financiamento: investimento estrangeiro, remessas e turismo. No entanto, estas três fontes de financiamento estão agora a ser fortemente afetadas. A nível mundial, os fluxos de capitais registaram uma diminuição de 60 %, uma vez que os investidores fogem para espaços seguros, e os trabalhadores migrantes perdem os empregos e deixam de poder enviar dinheiro para os seus países de origem.

Estamos a enfrentar uma recessão mundial e para evitar um colapso econômico nos países em desenvolvimento é necessário – e muito em breve – apoio financeiro e linhas de crédito consideráveis. A coordenação entre os bancos centrais e as instituições financeiras internacionais é a única opção viável para se poder avançar.

Por último, no meio deste profundo pessimismo, há uma hipótese de pôr termo a conflitos de longa data. Houve já alguns sinais positivos de cooperação entre rivais. Os Emirados Árabes Unidos e o Koweit, por exemplo, enviaram recentemente ajuda ao Irão, que foi atingido de forma particularmente grave pela COVID¬ 19. Ninguém se pode dar ao luxo de alimentar múltiplas guerras ao mesmo tempo. Como apelou António Guterres, secretário¬ geral das Nações Unidas, devemos aproveitar esta crise como uma oportunidade para restabelecer a paz.

Inicialmente, o mundo encarou a crise de forma descoordenada, com muitos países a ignorar os sinais de alerta e a agir de forma isolada. É agora claro que apenas juntos conseguiremos sair desta crise.

Josep Borrell é o alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e Vice Presidente da Comissão Europeia