Valor Econômico
11/11/2019 

Por Zevi Kann

Usinas termelétricas a gás ficariam situadas no litoral e desagregadas da rede de distribuição 

O segmento de distribuição é um elo fundamental na cadeia de gás canalizado. Seu papel, basicamente, consiste em implantar redes, operá-las, mantê-las e distribuir o gás com qualidade e segurança, atendendo a usuários industriais, residenciais, comerciais, veiculares e termelétricas em sua área de concessão.

Por essas atividades, as concessionárias recebem uma parcela da tarifa -a chamada ‘margem de distribuição’ – remuneração que, em média, corresponde a 17% do total pago pelos usuários. Outros 48% equivalem ao preço da molécula de gás e seu transporte, enquanto o restante é carga tributária.

No novo plano, usinas térmicas a gás ficariam situadas no litoral e desagregadas da rede de distribuição

Esses números evidenciam qual é o problema do preço para o consumidor do gás no Brasil: o custo da molécula do gás é o que tem maior peso na tarifa. As distribuidoras não produzem gás e nem o processam ou transportam. Tampouco ganham um centavo ao vendê-lo – elas o comercializam a preço de custo. E quanto maior o volume consumido pelo usuário, menor a margem de remuneração. Não é, portanto, a cobrança da margem de distribuição que ameaça a criação ou sobrevivência das usinas termelétricas – essa margem, em média, é de apenas 3% da tarifa dessas usinas. Logo, a competitividade desse negócio está atrelada à eficiência de seu projeto, aos seus custos de operação e capital e, principalmente, ao preço da molécula de gás.

É importante essa informação porque as termelétricas aparentemente foram eleitas como destino prioritário do gás proveniente do Pré-sal no programa Novo Mercado de Gás. No plano, as usinas ficariam situadas no litoral e desagregadas da rede de distribuição, modelo que, além de não contribuir com receitas para os Estados, perpetua a dificuldade de expansão da rede de gasodutos para o interior pela ausência de consumidores âncora.

A melhor forma de as distribuidoras colaborarem com o Novo Mercado é realizar o que sabem fazer: implantar, operar e manter sistemas de distribuição e agregar novos consumidores e mercado. Para isso, dependem de um sinal econômico (preço da molécula e um custo de transporte) que viabilize a substituição de outros combustíveis (mais poluentes, caros e/ou menos eficientes) pelo gás natural.

Vale esclarecer que o conceito das concessões de distribuição de gás canalizado é similar ao de condomínios, em que todos contribuem para o bem comum. Se um não honrar sua cota, os demais são onerados. Neste esforço, as tarifas devem ser isonômicas para as indústrias e sem subsídios para os usuários que estejam próximos às redes de transporte ou distribuição. A tarifa deve ser postal, de modo a estimular a implantação em localidades mais distantes.

Discordamos dos discursos inflamados que pregam a quebra do “monopólio das distribuidoras”: esse serviço de rede é um monopólio natural semelhante a concessões como energia elétrica, saneamento etc.

O chamado mercado livre será concretizado com o fim da exclusividade da comercialização do gás, permitindo que outros agentes possam vender o gás ao cliente final. Mas a movimentação deste gás é atribuição da distribuidora – e é correto que assim permaneça. Não podemos esquecer que o mercado livre depende basicamente da competição na oferta do gás. O estado de São Paulo dispõe de regulamentação completa e exemplar da livre comercialização desde 2011, tem registrados 14 comercializadores e nem por este motivo surgiu concorrência na venda de gás, ou seja, sem diferentes ofertantes de gás não há possibilidade de se instalar um novo mercado.

Nessa discussão, qualquer diagnóstico sobre os Estados e suas agências reguladoras deve antes de tudo priorizar a boa qualidade da regulação praticada cujos parâmetros felizmente não se limitam a questões do tipo “Consumidor livre- com duto dedicado e tarifa específica”.

Antes de qualquer medida apressada, devem pautar o debate algumas perguntas obrigatórias: 1- Para quem serve este tipo de regulação? 2- Qual a consequência para a totalidade da concessão e de milhares de consumidores residenciais, comerciais e de centenas de indústrias que não tenham esse privilégio? 3- Por que é necessário um duto dedicado se estamos dentro de uma concessão estadual que deve atender ao interesse da totalidade dos consumidores? 4- E por que a concessionária não poderia implantá-lo? 5- Como podemos considerar a regulação do Rio de Janeiro a mais avançada do país se as revisões tarifárias estão atrasadas há dois anos, o regulamento que disciplina o assunto mercado livre atenta contra o contrato de concessão, o comercializador não está disciplinado e sofreu embargos de praticamente todos os agentes interessados?

Não é possível promover mudanças sem a necessária análise de impacto regulatório. Uma indesejável quebra sistemática de disciplinas estabelecidas pelos contratos de concessão terá como efeito um grave aumento do risco de judicialização e, pior, sem qualquer benefício para o desenvolvimento do mercado. A boa regulação está muito distante de simples estereótipos ou frases feitas; cabe, sim, o fortalecimento, a independência e a atuação técnica e transparente das agências reguladoras estaduais.

 Muito precisa ser realizado para o estabelecimento de um mercado livre e competitivo no Brasil. A questão é focar nas questões certas – desde a Exploração e Produção (E&P) até o compartilhamento das instalações, passando por uma legislação adequada para os gasodutos de transporte. O Termo de Compromisso de Cessação (TCC) assinado pela Petrobras junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) mostra um caminho correto.

É preciso valorizar o papel das distribuidoras. Elas desenvolvem o mercado e atraem novos clientes – fator essencial para ganhar escala, o que é indispensável para o sucesso do Novo Mercado de Gás. A distribuição é a cauda do sistema a quem não compete abanar o cachorro, mas com certeza ajuda a equilibrá-lo.

 Zevi Kann é sócio-diretor da Zenergas Consultoria desde 2011. Dirigente da Comissão de Serviços Públicos de Energia-SP e da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) de 1998 a 2011