Décadas de avanços e incertezas marcam o saneamento brasileiro

A expansão do saneamento está diretamente relacionada ao crescimento sustentável das cidades. Conhecer essa história é importante para compreender os diversos fenômenos que explicam erros e acertos na gestão dos recursos hídricos, bem como planejar soluções e vencer o desafio de universalizar o acesso a toda população.

Até o século 18, não existia saneamento urbano nas principais cidades do mundo, tampouco no nosso país. Os índios brasileiros nativos já se preocupavam com o saneamento relacionado à própria saúde. Eles armazenavam água em talhas de barro ou argila ou até mesmo caçambas de pedra. Seus dejetos e demais detritos eram isolados em áreas delimitadas e distantes das comunidades. Nas cidades, para a maior parte das pessoas, a higiene mínima era feita com jarras e bacias domésticas. Quem tinha recursos financeiros, adquiria perfumes importados para controlar o cheiro corporal. O abastecimento público de água no Brasil se dava por chafarizes e fontes próprias. As vilas captavam e distribuíam comunitariamente a água, ainda que de forma precária, e os dejetos sanitários e o lixo eram removidos e incinerados pelas próprias famílias.

Um famoso cartão-postal do Rio de Janeiro, os Arcos da Lapa, pode ser o ponto de partida para contar a história do saneamento público. A mudança da capital brasileira de Salvador em 1763 pediria soluções de abastecimento hídrico. Assim, em 1718 começou a expansão dos Arcos Velhos – um aqueduto que ligava o Morro do Desterro (atual Morro de Santa Teresa) ao morro de Santo Antônio.

A obra se inspirou no Aqueduto das Águas Livres, que começava a ser erguido em Lisboa, Portugal. As águas que percorriam o aqueduto, finalmente inaugurado em 1750, chegavam aos pés do Convento de Santo Antônio por meio de um chafariz de mármore e de 16 bicas de bronze. O modelo deu tão certo que começou a ser adotado em outras cidades pelo país. O processo ganhou impulso quando a Família Imperial chegou ao Rio de Janeiro em 1808 acelerando várias transformações urbanísticas na capital e em outras cidades.

Até meados do século 19, não havia infraestrutura, políticas públicas e um modelo organizado para tratar do saneamento coletivo. Quase um século depois, em 1942, foi criado o Serviço Especial de Saúde Pública, que bem mais tarde se fundiria a outros segmentos da área de saúde – a Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP) e a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) – para o surgimento da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Tanto a FSESP e a Sucam como a Funasa contribuíram na missão de montar infraestruturas sanitárias pelo Brasil.

Fracasso na primeira privatização do saneamento

Nos anos 1950 – período de maior concentração populacional urbana –, o reflexo do êxodo rural e o ritmo acelerado de industrialização do país gerou um aumento dos problemas sociais e da exploração contínua dos recursos naturais, causando maior degradação ambiental. Além disso, as autoridades brasileiras perceberam uma forte relação entre a sujeira e a disseminação de doenças, como febre amarela, varíola e peste bubônica. As cidades eram viveiros de ratos, pernilongos e outros vetores de moléstias. Com o aumento demográfico, o governo experimentou delegar gradativamente a gestão do saneamento à iniciativa privada. As companhias privadas dirigidas por estrangeiros importavam da Europa os materiais e a técnica para obras de distribuição de água e esgotamento sanitário. Isso também impulsionou a importação de insumos. O país era invadido em massa pelos produtos industrializados como caixas d’água, canos, motores e chafarizes em ferro fundido.

Porém, até meados do século 20, arrastavam-se as melhorias reais nos serviços prestados, muito aquém das promessas empresariais. Pressões populares contra as constantes interrupções e a falta de ampliação e manutenção das redes de atendimento forçaram o encerramento das concessões e a retomada do controle estatal do saneamento. Pela primeira vez na história brasileira, ficou comprovado que o modelo privatizado, ainda que de forma rudimentar, não respondia aos interesses sociais na mesma proporção que as ambições comerciais.

Já que a saída era o Estado patrocinar o bem-estar social, o Decreto-Lei nº 949, de outubro de 1969, autorizou o Banco Nacional de Habitação (BNH) a aplicar recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) nas operações para financiar obras de saneamento pelo país. Dois anos depois, em 1971, foi instituído o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Consolidaram-se os princípios surgidos nos anos 1950 de autonomia e autossustentação por meio de tarifas e financiamentos com lastro em recursos retornáveis. Na sequência, foram criadas as primeiras Companhias Estaduais de Saneamento Básico, que ganharam relevância na prestação de serviços em âmbito municipal.

Juntas, atualmente as 26 associadas da Aesbe são responsáveis por levar água tratada a 75% das cidades brasileiras. São mais de 131 milhões de pessoas atendidas. “Em vez de se aplaudir aquilo que já está consolidado depois de anos e anos de muito trabalho, alguns setores preferem agora responsabilizar as empresas estaduais até pelo que não é de sua alçada – como a falta de saneamento em áreas não urbanas – para assim criticar o trabalho estatal e justificar uma pauta que exige a privatização do sistema”, comenta o secretário executivo da Aesbe, Ubiratan Pereira.

Redemocratização, avanços e retrocessos

Na década de 1980, quando o país se preparava para encerrar o regime militar instaurado em 1964 com a anistia política e a volta gradativa da democracia representativa, assistia a massivos investimentos e realização de obras, coordenadas pelas Companhias Estaduais de Saneamento, que estimularam a geração de oferta de água e esgotamento sanitário nas regiões urbanas do país.

A Constituição de 1988 trouxe uma nova ordem jurídica e reafirmou a questão da titularidade. O inciso V do art. 30 é claro quando define que compete aos municípios “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local”. Já o art. 241 diz que “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.

Em janeiro de 2007, foi promulgada a Lei nº 11.445/2007 ou Lei Nacional de Saneamento, que inaugurou um novo Marco Legal, ao estabelecer diretrizes para o saneamento e para a política federal de saneamento básico no Brasil cobrindo uma histórica lacuna na legislação do setor. Com ela veio, por exemplo, a possibilidade de livre celebração dos contratos de programa entre os municípios e as empresas estaduais. 

Batalha contra os contratos de programa

O mais recente levante para derrubar a Lei nº 11.445, sob o pretexto de atualização do Marco Legal do Saneamento, foi a edição da Medida Provisória (MP) nº 844, em julho de 2018. Ela revogava a autonomia para os titulares dos serviços de saneamento renovarem ou não os contratos de programa. A MP perdeu a vigência em 21 de novembro de 2018. Porém, no apagar das luzes, o governo Michel Temer editou, em 27 de dezembro de 2018, a MP nº 868, praticamente uma cópia da anterior e com as mesmas finalidades. Ela perdeu a validade porque sequer chegou a ser votada no Congresso.

Por fim, o ano de 2020 começa com a retomada de profundos debates sobre o futuro do saneamento. Após o arquivamento do Projeto de Lei (PL) nº 3.261/2019, nascido no Senado Federal, a Câmara dos Deputados aprovou em 17 de dezembro de 2019, com texto praticamente igual, o Projeto de Lei 4.162. A decisão parlamentar que pretende atrair investimentos da iniciativa privada, aguarda a volta do recesso legislativo para ser apreciada no Senado e novamente revisada pela Câmara.  Por isso, a proposta é rejeitada não só pela Aesbe, como por diversas entidades, gestores estaduais e municipais e parlamentares que entendem que o PL atual trará insegurança jurídica e, consequentemente, desestruturação do setor de saneamento básico.

O presidente da Aesbe, Marcus Vinícius Fernandes Neves, lembra que o sistema de saneamento do país é complexo e possui uma interligação. “A água que chega a muitos municípios percorre antes as adutoras de companhias de outros estados. Nossa preocupação é que esse PL se transforme em pulverizações nas prestações de serviços e abandone o olhar macro do país, prejudicando o direito de todos. O projeto parte do radicalismo da existência ou da extinção dos contratos de programa, sem ter previsto sequer um meio termo ou processo de transição. O que defendemos são ajustes na atual redação.”

Para Ricardo Silveira Bernardes, professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), os aportes privados são bem-vindos para resolver definitivamente os problemas no saneamento do Brasil, desde que o ente federativo não perca sua titularidade. “O uso do potencial da iniciativa privada pelas empresas de saneamento já existe. E, quando o poder público rompe um contrato fechado em parceria público-privada porque a empresa não conseguiu fazer o serviço significa mais garantia de controle social sobre o empreendimento. Se você concede integralmente, você perde a capacidade de fazer um contraponto à falta de iniciativa da empresa privada”, explica.      

Assim, ao rever a história – também pelo mundo em países como França, Estados Unidos, Espanha, Alemanha, Argentina, Canadá, Hungria e Itália –, é fácil comprovar que o saneamento gerido exclusivamente pela economia de mercado não produziu resultado social satisfatório. São expressivos os exemplos de retomada do controle público da água em função do fracasso da gestão privada. Atribuída ao filósofo, advogado e cientista político irlandês Edmund Burke, do século 18, a famosa frase “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” serve como um alerta contra a ameaça de reviravolta no modelo do saneamento brasileiro sem avaliar as consequências. Tudo o que o país não precisa e sua população não merece – principalmente a mais carente – é de um retrocesso ao passado, com a desconstrução do que foi feito até aqui pelas mãos das companhias estaduais de saneamento do Brasil.

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