Autores:
Rudinei Toneto Júnior – Professor Titular do Departamento de Economia da FEA-RP/USP
Alexandre Ganan de Brites Figueiredo – Professor visitante no PROLAM-USP
Por força do atual contexto legislativo do saneamento básico no país, há 1.106 municípios cujos contratos com as prestadoras desses serviços essenciais são considerados “irregulares”. Tendo em vista as metas do Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), qual o impacto dessa situação para os investimentos e a almejada universalização? Este texto propõe uma reflexão sobre esse problema. A fim de contextualizar a questão, é preciso lembrar que, em 2020, entrou em vigor a Lei 14.026, popularizada como “Novo Marco do Saneamento Básico”, que atualizou dispositivos do marco legal estabelecido pela Lei 11.445/2007, além de outros diplomas legislativos, e consolidou as metas de universalização previstas no PLANSAB: ao menos 90% da população com coleta e tratamento de esgoto e ao menos 99% da população com acesso à água potável até 31 de dezembro de 2033. Em consequência, os contratos de prestação de serviços de saneamento tiveram que incorporar essas metas.
Nessa estrutura legal, uma das inovações trazidas foi a proibição de celebração de novos contratos de programa no setor do saneamento. Além disso, os contratos dessa natureza ainda vigentes deverão extinguir-se no prazo estipulado, sem possibilidade de renovação. O impacto dessa determinação é grande porque cerca de 70% da população do país recebe os serviços de saneamento de companhias estaduais, cuja relação com os municípios é regulada em contratos de programa. Logo, sua proibição afetará as formas de provisão para grande parte da população, sendo necessária uma reflexão também sobre seu impacto (se positivo ou negativo) na busca pelo atingimento das metas de universalização.
Ao contrário das concessões comuns ou PPPs, firmadas entre o Poder Público e um ente privado, os contratos de programa são estabelecidos entre diferentes entes da Administração. No caso dos serviços de saneamento, eles existem para a gestão associada da prestação dos serviços em convênio de cooperação entre os estados (com suas companhias) e os municípios. Logo, não foram originalmente licitados por tratar-se de uma relação interadministrativa, de Poder Público a Poder Público, e foi exatamente essa construção jurídica que o “Novo Marco” atacou. A proibição estabelecida tem como consequência o caminho da licitação com a substituição dos contratos de programa pelas concessões comuns ou PPPs. Em outras palavras, a nova legislação adotou como pressuposto implícito uma incapacidade do Estado e, sobretudo, das companhias estaduais serem capazes de gerar o excedente necessário para custear os investimentos para se atingir as metas de universalização, fazendo uma opção clara pela privatização, muito além de buscar outros caminhos viáveis para a participação da iniciativa privada no setor.
Isso ficou ainda mais evidente com o Decreto 10.710/2021, por meio do qual todas as companhias estaduais precisaram comprovar, até 31 de março de 2022, sua capacidade econômico-financeira para cumprir as metas, seguindo metodologia estabelecida pelo próprio Decreto. Os contratos daquelas companhias cuja capacidade não foi considerada demonstrada passaram a ser considerados “irregulares”. Assim, o grupo dos contratos “irregulares” soma tanto os contratos de programa vencidos como aqueles cujas prestadoras não passaram pelo crivo determinado pelo Decreto 10.712/2021. Muito mais do que uma questão pertinente a uma relação jurídica, cada contrato nesse caso equivale a um município brasileiro, tornando “irregular” a prestação de serviços essenciais (em curso, frise-se) em grande parte das cidades do país.
Hoje, como foi dito, há 1.106 municípios nessa situação, além de mais 325 apontados como “regulares com restrição”. Se considerarmos apenas os em situação “irregular”, vê-se que eles estão concentrados nas regiões Norte e Nordeste do país, justamente aquelas em que existe maior déficit de cobertura dos serviços de saneamento básico. Conforme dados do SNIS (2021), 25,3% da população do Nordeste não tem acesso a fonte segura de água potável e 69,8% não é atendida por rede de esgoto. Já na Região Norte, os dados são ainda mais preocupantes e distantes das metas de universalização: 40% dos habitantes não acessam fontes seguras de água potável e 86% não tem acesso a esgotamento sanitário. Dentre os municípios da Região Norte, 37% estão com contratos “irregulares” (167), mesmo percentual da Região Nordeste, com 666 de seus 1794 municípios nessa situação. O percentual é também relevante no Centro-Oeste, onde 23% dos municípios têm contrato “irregular”. Contudo, nas regiões Sudeste e Sul a “irregularidade” atinge apenas 6,1% e 5,28% dos municípios, respectivamente. Portanto, o número de contratos “irregulares” é significativamente maior nas regiões do país que mais precisam de investimentos, dada sua distância das metas de universalização.
Diante desse cenário cabe a pergunta: se o princípio maior das metas incorporadas pela Lei 14.026/2020 é a universalização por meio da facilitação dos investimentos na grande escala necessária, é possível dizer que a “irregularidade” dos contratos nas regiões do país que mais tem necessidade de expansão dos serviços de saneamento contribui para a atração de investimentos? A resposta é não. Na verdade, o efeito obtido é o inverso do pretendido pela legislação: dada a insegurança jurídica e a perspectiva de uma futura licitação, as companhias estaduais que continuam operando os serviços não tem incentivos para a realização de investimentos.
Assim, ao definir como irregulares os contratos de mais de 1000 municípios do país, o Decreto, na verdade, criou obstáculos relevantes para as possibilidades de expansão dos serviços e mesmo de investimentos que visem melhorar a produtividade, os padrões técnicos, dentre outros. Em geral, contextos de insegurança jurídica desincentivam investimentos, públicos ou privados. Frise-se também que, em decorrência do Decreto 10.710/21, os municípios com contratos “irregulares” ficam privados de acessar fontes federais de financiamento para o saneamento básico, completando um cenário de total exclusão. Ora, trata-se de 20% das cidades brasileiras que, por força do Decreto, não receberão investimentos nem das prestadoras e nem dos recursos federais, quer sejam os da União, quer sejam os derivados de operações de crédito com entidades federais.
Pode-se alegar, em contraposição, que a consequência primeira da “irregularidade” é a exigência de uma licitação dos serviços. Afinal, a abertura para o mercado permitiria, em tese, que empresas privadas em melhores condições assumissem a prestação. Contudo, esse argumento (implícito do “Novo Marco” e nos prazos do Decreto), encontra problemas. Primeiro, a organização dessas licitações é um trabalho complexo, que envolve modelagens contratuais de alto nível antecedentes à publicação do Edital, além de uma concorrência igualmente complexa. Ou seja, demanda um prazo dilatado o que, por si só, já compromete as metas de universalização para 2033.
Mas ainda há outro elemento, mais relevante, a ser considerado. A maior parte do déficit de cobertura encontra-se nas regiões mais pobres do país, com municípios pequenos e população de baixa renda. Mesmo quando se observa o déficit em grandes centros urbanos do Sudeste e Sul, regiões mais ricas, verifica-se que ele se concentra nas áreas periféricas com ocupação irregular e baixa renda. Do ponto de vista dos investidores privados, haverá grande interesse em disputar licitações para assumir a prestação de serviços nessas localidades em que as metas de expansão são mais urgentes e pronunciadas? Ou é razoável supor que o mercado tende a buscar as melhores condições de recuperação de seus investimentos oferecidas pelas regiões mais ricas? Evidentemente, o incentivo maior, mesmo com as estruturas regionalizadas também trazidas pela Lei 14.026/20, está direcionado para as regiões mais ricas, ainda que as menos atrativas possam, em alguma medida, ser alvo de interesse. Sendo assim, a “irregularidade” dos contratos, tendo em vista que sua maior parte está exatamente nas localidades mais carentes e necessitadas de investimento, não oferece possibilidades promissoras de ser superada integralmente por licitações.
O texto original da Lei 14.026/20 contemplava esse problema. Seu artigo 16 dispunha que os contratos de programa poderiam ser renovados por mais 30 anos, contados a partir de 31 de março de 2022. Dessa forma, se evitaria a insegurança jurídica e o risco da queda dos investimentos que a “irregularidade” comporta. Contudo, essa disposição recebeu o veto presidencial e o “Novo Marco” deixou como única opção a licitação dos serviços, nas condições acima descritas.
Quanto a esse tema, há que se fazer uma observação. É verdade que, após a edição da Lei 14.026/20, houve uma aceleração na estruturação de concessões comuns e PPPs no setor do saneamento básico. Contudo, um exame detido não permite afirmar que ela decorra da nova legislação, posto que os contratos de maior destaque tiveram seus processos de estruturação iniciados antes do “Novo Marco”.
Em Alagoas, o primeiro Edital de Licitação referente ao bloco regional que corresponde à região metropolitana de Maceió (referência para outras experiências), foi publicado em 29 de abril, dois meses antes da Lei 14.026/20. As outras duas licitações daquele estado, realizadas em dezembro de 2021, decorrem mais do processo aberto pela primeira do que do “Novo Marco”. Por sua vez, no Rio de Janeiro, as licitações ocorridas em 2021 também derivam de estruturações que já vinham em curso no ano anterior, independentemente da nova legislação. O mesmo se aplica à PPP da Cagece, licitada em setembro de 2022. A rigor, essas concessões e PPPs desenvolveram-se no ambiente legal anterior ao “Novo Marco” e ao Decreto 10.710/21.
Pode-se refletir também sobre a possível relação entre esses processos licitatórios e o acordo de refinanciamento da dívida dos estados com o Governo Federal, consubstanciado na edição da Lei Complementar 156, em 28 de dezembro de 2016. A privatização das companhias estaduais de saneamento, bem como outras formas de delegação que não envolvam necessariamente a privatização, eram garantias para a renegociação da dívida com a União. Também por essa razão, se afasta a relação direta entre o “Novo Marco” e uma expansão das concessões, PPPs e projetos de privatização.
De todo modo, e voltando à questão central, os municípios que agora têm contratos “irregulares” se encontram em situação delicada. Sem recursos próprios; sem investimento das prestadoras atuais, temerosas diante da incerteza dessa “irregularidade” legal; sem acesso a recursos federais; e sem perspectivas atraentes para as prestadoras privadas, os municípios detentores de contratos de programa “irregulares” estão em uma situação pior que a de antes do “Novo Marco”. Não há perspectiva de solução próxima a serem mantidos os atuais termos do Decreto 10.710/21 e mesmo da legislação com sua proibição dos contratos de programa. Como essa situação está na contramão do princípio maior da legislação (a universalização dos serviços até 2033) é razoável considerar uma alteração desse cenário. Uma vez que a “irregularidade” contratual causadora desse bloqueio ao investimento sobretudo em municípios que mais dependem dele deriva não da legislação em si, mas de um Decreto presidencial, sua alteração é relativamente simples, dependendo apenas da vontade política e da pactuação com os setores envolvidos, já conscientes do problema aqui exposto.
Não se trata de afastar o investimento privado, absolutamente necessário, mas sim de resgatar a importância do papel do Estado em atividades para as quais os incentivos ao mercado são baixos, sob pena de condenar ao esquecimento parte relevante da população. O decreto 10.710/21, ao atribuir o status negativo de “irregulares” a contratos que envolvem serviços essenciais que continuam sendo prestados desconsidera a importância fundamental das estatais. Seu efeito foi, assim, o oposto ao pretendido pela legislação, levando a uma interrupção no investimento e a um limbo jurídico que causará o atraso no cumprimento das metas de universalização.
Por fim, é importante ressaltar que a participação do setor privado no saneamento é tanto necessária como já conta com instrumentos em nossa legislação para que se concretize, em conjunto com as companhias estaduais, como os contratos de performance e as próprias PPPs. A “irregularidade” de contratos vigentes, nos termos como está colocada, nem colabora para ampliar a participação privada e nem oferece uma solução alternativa ao contrato de programa com a companhia estadual. Não haverá solução possível para a universalização do saneamento básico no país sem o apoio do investimento privado, mas tampouco o haverá sem a atuação estatal.
Rudinei Toneto Júnior – Professor Titular do Departamento de Economia da FEA-RP/USP
Alexandre Ganan de Brites Figueiredo – Professor visitante no PROLAM-USP