Novo Marco Legal precisa manter a titularidade municipal para não ser judicializado

ENTREVISTA: LEANDRO FROTA

Além de pesquisador e ex-gestor em importantes instituições da sociedade civil e órgãos como o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o advogado Leandro Mello Frota é presidente da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Nacional).

Durante a discussão legislativa para atualizar o marco regulatório do saneamento, a OAB tem procurado aprofundar o debate, trazer segurança jurídica, conciliar interesses públicos e privados, e buscar inovação para o setor.

Em entrevista exclusiva para a Aesbe, Leandro Frota enumera pontos positivos e críticos do Novo Marco Legal do Saneamento.

AESBE: É necessário mesmo mudar o Marco Legal do Saneamento do Brasil?

Leandro Frota: Hoje há, de fato, uma necessidade de aprimoramento regulatório do setor. Enquanto o mundo discute os avanços tecnológicos em saneamento, no Brasil ainda estamos perseguindo a universalização, uma discussão pertinente aos últimos dois séculos.

AESBE: Então o novo Marco Legal em tramitação no Congresso é positivo?

Leandro Frota: A atual proposta de um novo marco surgiu com uma boa intenção, movida por uma necessidade real. Porém, está sendo marcada pela carência de uma boa redação legislativa. Parece que ali ocorreu um “recorta e cola” de propostas anteriores que não prosperaram. Quando você a lê, artigo por artigo, percebe que as ideias não estão bem conectadas. Isso já cria uma certa confusão e não contribui para aprimorar a legislação. E qualquer mudança legislativa deve ser clara, não só para o especialista, mas para a população de um modo geral. Todo mundo tem que ler e entender. Caso contrário, a legislação já chega na sociedade de forma excludente.

AESBE: Quais os outros problemas que a atual proposta de Marco Legal do Saneamento tem apresentado?

Leandro Frota: Um novo Marco Legal não pode nascer sob falta de segurança jurídica. Neste momento, já vivemos uma certa tranquilidade traduzida no conceito da titularidade. Como sabemos, a Constituição coloca como titular de vários serviços – inclusive de saneamento –, os municípios e o Distrito Federal. Porém, o texto em questão já nasce atacando esse conceito, estabelecido na nossa Constituição. A atual proposta retira e enfraquece essa titularidade, o que já é um erro. Este Marco Legal em discussão não altera o texto constitucional, mas, sim, algumas leis, e isso já causará uma desordem.

O novo Marco Legal não deve ser apenas uma pauta econômica, e sim uma pauta de direitos humanos. E atualmente a nova proposta não aborda as questões socioambientais. É sabido que, quando se investe em saneamento, diminui-se na pobreza e economiza-se quatro vezes mais em saúde pública. Levar água e esgoto nada mais é que levar dignidade. Infelizmente, o novo texto não está sintonizado com o que há de mais moderno em sustentabilidade, como a Agenda 2030 da ONU, por exemplo, que define os objetivos de desenvolvimento sustentável das nações.

AESBE: Na prática, como ficam as cidades com tal perda de autonomia?

Leandro Frota: Se a população de um bairro se depara, por exemplo, com esgoto correndo a céu aberto ou com a falta d’água, irá cobrar do prefeito a solução do problema. Em uma mudança de cenário, com enfraquecimento do poder municipal sobre o saneamento – como determina o projeto de lei –, as pessoas não compreenderão que isso, agora, é uma questão metropolitana ou de responsabilidade de um consórcio de empresas. Elas vão continuar a exigir as respostas do gestor local. E ninguém assume a cadeira do Poder Executivo apenas para ser figurante. Um candidato que é eleito como prefeito entende que pode fazer a diferença para seu povo. Porém, a perda da titularidade municipal, nos termos em questão, retira o bônus do reconhecimento para os bons gestores e deixa apenas o ônus da falta de autonomia, da incapacidade de decidir.

AESBE: Como você vê a delegação adicional de poderes também à ANA (Agência Nacional de Águas) para planejar e gerir o saneamento nos municípios?

Leandro Frota: O PL não só não instrumentaliza a ANA para a questão da regulação como também da fiscalização. Regular não é somente editar um monte de portarias, regulamentos e resoluções. É, antes de mais nada, ter o poder de fiscalização. Devido à crise econômica, o Estado está cada vez mais enxuto. E a agência, como outros órgãos e autarquias, carece de mais servidores, pois há muito tempo não há concurso público e em vagas suficientes para atender o país. Isso também é motivo de insegurança jurídica, pois o setor de saneamento já possui sua regulação pelas agências estaduais e nas instâncias municiais, em alguns casos. Assim, alçar a ANA como reguladora também pode ser um equívoco.

AESBE: Como o senhor vê então a participação do setor privado, se o caminho não é a privatização?

Leandro Frota: O texto do novo Marco Legal tem boas intenções ao propor abrir o setor para mercado. Nós também entendemos que o setor público, sozinho, não vai universalizar, e que o setor privado tem que ter o seu protagonismo. Só universalizaremos o saneamento no nosso país com a união de esforços entre o público e o privado. Para isso, podem ser celebradas PPPs (Parcerias Público-Privadas), concessões e subconcessões. Os modelos e instrumentos já existem, e são modelos vitoriosos em outras áreas. Temos exemplos na área de infraestrutura, que são muito bem feitos no nosso país como, por exemplo, os portos e aeroportos brasileiros. A gente não precisa reinventar a roda. Devemos aprimorar os conceitos jurídicos. Os gestores precisam aprender a usar os instrumentos jurídicos disponíveis.

AESBE: Explique um pouco melhor o que é, na prática, a insegurança jurídica no contexto do saneamento.

Leandro Frota: No caso do Marco Legal, é algo que traz intranquilidade a todos os empreendedores – sejam empresas privadas ou públicas –, que estejam fechando contratos ou disputando licitações para levar o saneamento a determinado município. Quem vai investir sob essas condições? Se o Marco Legal for judicializado, que empreendedor terá coragem de concorrer em um certame para depois tudo cair por terra? Assim, não podemos destruir tudo o que já foi feito. O país não pode ficar mudando conceitos jurídicos a cada 5 ou 10 anos. Pode fazer PPP de tudo, menos de saneamento?

AESBE: E quanto aos Contratos de Programa?

Leandro Frota: Em que pese a possibilidade de uma mudança na legislação em termos de contratos, o Novo Marco Legal discutido até aqui deveria nascer com toda proteção jurídica. Extinguir os Contratos de Programa ou colocar prazos impraticáveis para a universalização são apenas malabarismos onde o principal resultado é desmantelar as empresas estaduais, onde o certo seria cobrar que as concessionárias tivessem modelos de gestão cada vez mais aprimorados.

AESBE: A questão tarifária está sendo deixada de lado na discussão?

Leandro Frota: Isso é um outro grande problema que o novo marco regulatório não fala. A tarifa sempre será um problema de ambos os setores, o público e o privado. Imagine jogar para uma só agência federal as particularidades que envolvem cada canto do Brasil. As agências locais possuem uma capacidade muito maior para dar a palavra final. E, mesmo assim, às vezes podem rever alguma interpretação do modelo tarifário.

AESBE: Com todas essas possíveis inconstitucionalidades abarcadas, a aprovação do novo Marco Legal pode abrir o caminho para sua judicialização?

Leandro Frota: Ao meu ver, isso vai ocorrer e acabar consolidando um clima de insegurança jurídica no nosso país, porque ninguém vai investir num ambiente regulatório judicializado. Então, ao invés de aumentar, inicialmente os investimentos vão diminuir muito. Nem os próprios presidentes das empresas públicas terão coragem de investir. Ele vai seguir qual legislação? Se seguir a do o marco novo e depois ele cai, como fica? Ou segue o marco antigo, e se as ações contra o novo marco caem? Assim, todo mundo poderá cruzar os braços esperando o fim dessa discussão, o que é muito ruim para o país. E outro detalhe importante: numa provável judicialização, aquelas datas definidas como metas para a universalização do saneamento também deixam de existir, pois o cálculo é feito considerando o início dos investimentos após a lei entrar em vigor. E uma judicialização pode durar anos até a decisão final.

AESBE: O caso tem potencial então para acabar nas mãos do Supremo Tribunal Federal?

Leandro Frota: Ainda creio que possam ocorrer algumas mudanças legislativas até a sanção da lei, nesse caminho de ida ao Senado e retorno à Câmara. Mas, no caso de aprovação do projeto como está, por ser matéria constitucional, vai ser discutida no Supremo, na forma de ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade]. Associações, partidos políticos e Ministério Público têm poderes para ingressar com ações diretas de inconstitucionalidade para questionar pontos que tenham a ver com seus interesses. 

AESBE: A OAB poderá entrar nessa luta nos tribunais?

Leandro Frota: Sim, mas só depois que tivermos a clareza de quais pontos restarão a serem questionados com a aprovação. Vamos ouvir também todas as associações interessadas no assunto, e discutir cada ponto para construir o caminho a ser trilhado pela OAB. Há uma tendência clara que a Ordem não abrirá mão de continuar a exercer seu papel de protagonista nessa questão da atualização do Marco Legal do Saneamento.

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