Valor Econômico
21/07/2021

Por Gabriel Jamur Gomes                       

Projetos para o Rio de Janeiro atraíram investimentos da ordem de R$ 53 bi

O jogo de xadrez se inicia com a fase de “abertura”, na qual os jogadores posicionam suas peças para preparar o desenvolvimento da partida. Essa etapa é definidora das estratégias que orientarão o resultado do jogo. De igual modo, o último ano desde a aprovação do novo marco legal do saneamento básico deve ser compreendido como a abertura, na qual poder público e mercado se posicionaram para a transição do modelo vigente desde os anos 1960, cujas grandes protagonistas eram as empresas estaduais e a prestadoras municipais. A lei definiu dois nortes para a mudança do setor: a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033; a sustentabilidade econômico-financeira da atividade por meio da prestação regionalizada e do aumento da participação privada pela competição. Todo o marco foi formado sob tais objetivos, expressamente definidos por ele como princípios.

Do ponto de vista jurídico-institucional, a primeira jogada da abertura se deu com os vetos da Presidência, mantidos pelo Congresso, para impedir a prorrogação dos contratos de programa e acelerar a participação privada. As jogadas seguintes se deram de maneira lenta, com a edição dos decretos que regulamentam: o repasse de recursos pela União; os requisitos para comprovação de capacidade financeira das empresas; e a estruturação interna da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA). A agência, ao assumir as atribuições que lhe foram outorgadas pela nova lei para uniformizar a regulação em âmbito nacional, definiu importante agenda regulatória que, apesar de ambiciosa, ainda aguarda ser cumprida (as metas do primeiro semestre de 2021 já não foram atingidas).

STF deve garantir segurança jurídica para a transição e atração de investimentos diante da onda de judicialização

Os agentes privados vêm fazendo esforços para captar capital e reforçar seu caixa para investir R$ 753 bilhões necessários para alcançar até 2033 a universalização – inviável de se fazer

apenas com recursos públicos. Os projetos modelados pelo BNDES para as regiões metropolitanas de Maceió (AL) e Rio de Janeiro (RJ) mostraram o apetite do mercado e atraíram outorga e investimentos da ordem de R$ 4,6 bi e R$ 53,6 bi, respectivamente. Em comparação, em 2019, a concessão sem licitação do município de Fortaleza para a estatal Cagece obteve somente R$ 1,08 bi à cidade – que tem quase o dobro da população atendida no leilão de Maceió.

Bem, quais as próximas jogadas? O mais importante é terminar a abertura da partida. As jogadas atuais do poder público, apesar de importantes, são apenas o começo.

Em âmbito federal, de imediato, o Poder Executivo precisa completar a revisão do Decreto nº 7217/2010, que regulamenta a Lei Nacional de Saneamento Básico. Ainda, é necessário que a ANA conclua sua reorganização interna e siga com a agenda regulatória com olhar atento aos temas sensíveis ao mercado e novos projetos (por exemplo, conteúdo mínimo dos contratos, indicadores, critérios para indenização de ativos e reequilíbrio econômico-financeiro etc.). Tais normas de referência são fundamentais para se alcançar alguma uniformidade na fragmentada regulação feita pelas quase 70 agências subnacionais que, em vários casos, não possuem estrutura ou governança regulatória adequadas para conferir segurança a investidores externos. O Congresso deve resistir às pressões já em curso para retroceder nas conquistas da nova lei (como a transição das empresas estaduais e prazos de universalização).

marco. Onze unidades da Federação já conseguiram definir os blocos regionais no prazo legal, as demais ainda faltam finalizar essa etapa fundamental. Algumas também se posicionam para privatizar suas companhias estaduais (por exemplo, na semana passada foram enviados à Assembleia Legislativa do RS os projetos de venda da Corsan), ou mesmo para participar dos novos leilões como compradoras (a Sabesp fez parte de um dos consórcios do leilão de Alagoas). E, claro, devem dar continuidade à modelagem dos novos projetos (como os leilões previstos para Amapá, Rio Grande do Sul, Alagoas e Minas).

Os Municípios precisam, acima de tudo, resistir aos impulsos do calendário eleitoral, que os levam a ter o menor nível de investimentos quando prestam os serviços de modo direto. Tais medidas, levadas a reduzir tarifas em curto prazo, normalmente violam contratos e impedem sua sustentabilidade em longo prazo. Mais do que contar com alguma alteração de prazos no Congresso, é importante encararem a meta de universalização até 2033 como força motriz para se reestruturarem internamente e atingirem os investimentos necessários.

É fundamental que o Judiciário, especialmente o STF, garanta segurança jurídica para a transição setorial e atração de investimentos diante da onda de judicialização que se avizinha devido aos decretos regulamentadores, novos projetos e blocos regionais. Para isso, é necessário julgar as ADIs em trâmite no Supremo de modo a assegurar a constitucionalidade da nova lei (a ADI 6492 está pautada para 24/11/2021); delinear de maneira clara a repartição de competências entre União, Estados e Municípios na prestação regionalizada à luz do precedente da ADI 1842 e julgados recentes que revalorizaram o federalismo brasileiro (a guerra de liminares nos leilões do RJ e AL decorreu sobretudo de conflitos interfederativos); afastar voluntarismos estatais que criem insegurança jurídica e violem o equilíbrio econômico financeiro dos contratos. As decisões do presidente ministro Luiz Fux, que garantiram o leilão do Rio de Janeiro, são bons sinais vindos do Tribunal.

E o desfecho do jogo? É inviável avaliar o resultado do novo marco a partir do que aconteceu até agora. Trata-se de uma partida de longo prazo. No último ano, apenas foram edificados os alicerces sobre os quais serão estruturados os projetos nas próximas décadas. Ao final, quem ganhará ou perderá não será determinado ente da Federação ou da iniciativa privada, mas a população, que poderá abrir a torneira e tomar com segurança água limpa apesar da crise climática que logo vir.

Gabriel Jamur Gomes é mestre em direito pela UFPR e doutorando na UnB. Advogado no setor de saneamento, do escritório XVBM. Professor de Direito e Coordenador do Núcleo Nacional de Estudos em Direito do Saneamento Básico (GESANE/UnB). Membro da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Sustentabilidade da OAB/Federal.