Ante uma esquerda dizimada, Maria da Conceição Tavares propõe um pacto para investir os recursos das privatizações

Por Maria Cristina Fernandes – Valor
De São Paulo 27/09/2019 05h00

“A proposta não é de virar de ponta cabeça a estratégia do ajuste fiscal. Infelizmente não dá. O realismo é essencial. O governo não é nosso.” Fica difícil ignorar o apelo ao se saber de onde vem. Aos 89 anos, a irriquieta Maria da Conceição Tavares busca uma saída ao centro para tirar o país da maior crise que já conheceu desde que aqui desembarco em 1954. Para isso, volta a se insurgir contra o dogmatismo. Desta vez, o da esquerda. Seu pacto passa pelas privatizações.

Não se trata de vender todas as estatais, nem a qualquer preço ou propósito. A economista exclui empresas como a Petrobras, que se faz estratégica pela dependência do país do transporte rodoviário, mas sugere que a venda de estatais, a securitização de imóveis e terrenos e toda a comercialização de ativos públicos tenham 50% de seu valor revertido investimentos: “Os 50% restantes ficariam para o governo e seus arroubos de política fiscal”.

Economista mais influente do debate público no Brasil, Maria da Conceição hoje pouco sai de seu apartamento no Flamengo, zona sul do Rio, onde recebe amigos e ex-alunos, lê e escreve. No início do mês entregou à Inteligência” artigo com a proposta do pacto a ser publicado no próximo número da revista. Nele, diz que a crise só se agigantou porque, assim como em 1930, não houve ação estatal para revertê-la. Lá atrás porque o Estado era incipiente. Hoje porque foi inerte.

Confessa seu pessimismo sem se deixar abater. A idade não lhe fez menos cáustica nos diagnósticos. Diz que, à exceção do setor financeiro (“oligopólio consentido”) e do agronegócio (“de baixo impacto para o valor adicionado da atividade”), todos os demais setores da economia brasileira estão de cócoras. 

Enumera os escombros daquela que denomina como a pior performance econômica dos últimos 120 anos: queda de 40% na construção pesada no acumulado dos últimos cinco anos, mais baixa participação da indústria no PIB desde o início da série histórica e recorde de iniquidade com desempregados, subempregados e desalentados somando 40 milhões de brasileiros.

Maria da Conceição nunca recorreu ao economês para dizer o que pensa. Não seria aos 89 anos que passaria a fazê-lo. O Brasil, diz, é um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Como é o Estado quem convida a iniciativa privada a aportar recursos na atividade produtiva, e não há Estado sob um ajuste fiscal generalizado, o bicho vai correr até a exaustão. É contra o risco da conflagração social que vem o pacto.

Vai buscar em Ignácio Rangel a ideia da venda de estatal com dinheiro carimbado para investimento. Foi no início de sua formação como economista que Conceição conheceu o mestre de sua devoção. Matemática formada em Lisboa, emigrou para o Brasil com o marido, o engenheiro Pedro José Serra Ribeiro Soares, ambos militantes da resistência ao salazarismo. A história está contada na coletânea de textos sobre a economista organizada por Hildete Pereira de Melo, que acaba de ser lançada sob o patrocínio do Centro Celso Furtado e da Fundação Perseu Abramo, “Maria da Conceição, Vida, Ideias, Teoria e Políticas” (Editora Expressão Popular, 2019).

O marido havia sido convidado para trabalhar numa empresa de construção civil e ela, grávida de quatro meses, queria ser professora de matemática e estatística. Impedida de ensinar pelas leis da época, teve seu diploma reconhecido no concurso para o Instituto Nacional de Imigração e Colonização, onde ficaria responsável pelas planilhas sobre a estrutura fundiária. Foi o contato com os dados da propriedade de terras no país que a empurrou para a economia.

Fez vestibular para a Universidade Federal do Rio de Janeiro e no mesmo ano de seu ingresso, 1957, foi contratada pelo recém-criado Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), onde trabalharia com Rangel. Da incumbência inicial de fazer uma simulação econométrica de distribuição de renda no Brasil, adentrou o debate sobre desenvolvimento econômico impulsionada pelo lançamento de “Formação Econômica do Brasil”, de Celso Furtado, e findou na colaboração com o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek.

Na UFRJ, manteve o pé na outra canoa. O domínio da matemática lhe trouxe o respeito de professores como Roberto Campos, Eugenio Gudin e Octávio de Gouveia Bulhões, de quem seria assistente. O apreço dos monetaristas acabaria por ser providente. Em 1974, um currículo que incluía a chefia do escritório da Cepal no Rio, uma pós-graduação na Sorbonne, aulas na Universidade Autónoma do México, na Universidade do Chile e uma assessoria ao governo Salvador Allende, além de seu primeiro livro, “Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, Ensaios Sobre a Economia Brasileira” (Zahar, 1972), hoje na 13ª edição, virou ficha corrida.

Presa no Aeroporto do Galeão pelo Doi-Codi, foi solta dois dias depois, sem processo, por intervenção do então ministro Mário Henrique Simonsen junto ao presidente Ernesto Geisel. Ao mencioná-lo na “Inteligência”, Maria da Conceição diz que Simonsen, ao contrário de Rangel, preconizava o uso das privatizações para o abatimento da dívida interna, mas hoje se daria o benefício da dúvida: “Mário era muito inteligente, mas um cabeça dura. De todo modo, se estivesse aqui hoje estaria pensando diferente. Ele também tinha um lado keynesiano. E, como dizia John Maynard, ‘a realidade muda, eu mudo’”.

Além da esquerda dizimada, o que move sua mudança é o dogmatismo da direita. Resume o governo Jair Bolsonaro como disparatado e só vê no ministro Paulo Guedes ambição de poder. “Duvido que qualquer um [Bulhões, Simonsen e Campos] incorresse nos desatinos cometidos pelos rapazes do governo, todos pseudo gestores públicos.”

É fiada em Keynes que também se defende da patrulha. Em 1994, trocou o MDB pelo PT. No primeiro, foi ardorosa defensora do Plano Cruzado e conselheira econômica do deputado Ulysses Guimarães. Pelo PT, se elegeria ao primeiro e único mandato de deputada federal, numa campanha financiada com a venda do livro “Lições Contemporâneas de uma Economista Popular” (Francisco Neiva, 1994), resultante da compilação das crônicas publicadas na “Folha de S. Paulo”, onde foi colunista por 11 anos.

Amigos e ex-alunos percorriam bares do Rio vendendo seu livro ora na companhia de um boneco gigante vestido de Maria da Conceição Tavares com um cigarro na mão, ora na companhia da própria candidata, que, conhecida pelo pavio curto, era obrigada ao inaudito cultivo da paciência para conquistar eleitores.

A oposição às privatizações pautou seu mandato. Em longa entrevista durante aquela campanha, em que consumiu metade de uma carteira de cigarros, disse que se candidatava para não adoecer. A saída que encontrara era falar – e brigar. A presença, no governo de ex-alunos, como Pedro Malan e Gustavo Franco, parecia deixá-la ainda mais à vontade.

Em 6 de maio de 1997, dia em que foi vendida a Companhia Vale do Rio Doce, subiu à tribuna: “O país e as futuras gerações não têm por que ser vítimas de dogmatismos ideológicos que nada têm a ver com a nossa realidade. Tampouco têm por que arcar com os custos de esquemas de poder cujos compromissos externos vinculados a sua permanência e extensão no tempo envolvem o sucateamento de um patrimônio que pertence a toda a sociedade brasileira”.

No ano seguinte, antes de deixar a Câmara, voltaria ao tema: “O governo privilegia as privatizações como suposto mecanismo de financiamento das contas internas e externas, deixando de lado tanto a melhoria dos serviços e a redução dos custos para o consumidor quanto o problema maior do emprego e da eficiência dos serviços de utilidade pública.”

Vinte anos depois, Conceição não arreda uma vírgula de tudo o que já disse ou escreveu sobre a desmobilização do patrimônio público, mas se rende à crise. Fia-se nas contas do ministro da Economia Paulo Guedes, de que as vendas dos ativos da União alcançariam R$ 1,25 trilhão. Metade disso, calcula, equivale a três vezes o investimento direto estrangeiro, 50% do total das reservas cambiais, nove vezes o investimento total do governo federal e 24 vezes o valor dos investimentos públicos em infraestrutura no ano passado.

Uma nova emenda constitucional teria de ser aprovada para tirar os investimentos da restrição de gastos da lei do teto. Só assim estaria viabilizado o pacto pelo investimento em saneamento, combate a epidemias, coleta de lixo, rodovias, ferrovias, redução do custo portuário, estímulo à navegação de cabotagem e prevenção de apagões. Para regenerar a indústria, o governo teria que recuar do “reformismo ressentido” no BNDES. Seria capaz, assim, de aumentar a taxa de ocupação da mão de obra e reduzir a erosão da Previdência Social. 

O vigor com o qual ainda esgrime seus argumentos contrasta com o estado de ânimo em relação ao futuro. Com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva preso, não vê viabilidade numa esquerda que perdeu substância. A saída passa pelo centro, que sumiu como nunca antes na história. Sessenta e cinco anos depois, a “velha que não desiste”, como se define, faz uma conclamação a trabalhadores, empresários, militares e tecnocratas. Um apelo bem anos 1950, quando, ao desembarcar na praça Mauá, no centro do Rio, encontrou um país em ebulição.

Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente
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