Folha de São Paulo
10/07/2020

Por Mara Gama

Empresas comemoram taxa de limpeza e querem veto a artigo que as retira das concessões; lei abre espaço para incineração

O Senado aprovou no dia 24 de junho o novo marco legal para o saneamento básico no país (PL 4.162/2019), com um grande impulso à privatização dos serviços. Até dia 15, deve vir à sanção presidencial.

A proposta traz metas de universalização de água e esgoto tratados até o ano de 2033. Hoje, 100 milhões de pessoas não têm coleta de esgoto e 34 milhões não têm acesso à água tratada.

O marco do saneamento também estabelece regras para contratação de tratamento de resíduos. Hoje, 6,3 milhões de toneladas por ano de lixo domiciliar não são coletados, mais de 3,000 municípios destinam seus resíduos para locais inadequados, com 29,5 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU) por ano sendo deixados em lixões ou aterros sem sistemas de proteção à saúde das pessoas e do meio ambiente.

Com exceção do artigo 20, que tira as empresas de limpeza do sistema de concessões, e contra o qual essas empresas estão mobilizadas (explico logo mais neste texto) , as empresas de tratamento de resíduos estão vendo com ótimos olhos a nova lei do saneamento. Estimam investimentos de R$ 15 bilhões até 2030.

O marco estabelece a obrigatoriedade de um sistema de remuneração ligado a um plano de gestão municipal de resíduos. Além disso, estimula os contratos de concessão de serviços de longo prazo.

“É a primeira vez que aparece a sustentabilidade financeira do sistema descrita em lei”, diz Carlos Silva Filho, da Abrelpe, Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública. Segundo ele, os dispositivos aprovados asseguram sustentabilidade econômica e financeira dos serviços de limpeza urbana e maior segurança jurídica nos contratos de execução.

“Isso pode gerar um salto na gestão. O que se observou nos nove anos de existência da PNRS (Política Nacional de Resíduos Sólidos) é que os municípios não tinham dinheiro para sair dos lixões e construir aterros”, diz.

“O sistema de limpeza urbana tem custo diário. Fazer um investimento de uma planta de tratamento pode ser caro, mas é pagável num período de tempo. Mas o custo diário não acaba nunca. Então, esse custo ficava sem solução”, analisa.

Segundo Silva Filho, entre o fim dos anos 1990 e começo dos 2000, o governo federal e ministérios do meio ambiente chegaram a construir aterros. “Mas 95% desses aterros viraram lixão, porque os municípios não tinham como custear a operação diária. Isso foi mostrado em relatórios do TCU”, afirma.

Pelas novas regras, as cidades devem apresentar até o fim de 2020 plano para acabar com os lixões e qual será a forma de financiar. Em agosto de 2021, acaba o prazo para capitais e cidades de regiões metropolitanas encerrem de vez os lixões.

Agosto de 2022 é fim do prazo para que os municípios com mais de 100 mil habitantes façam o mesmo. Para 2023 fica o prazo dos municípios com população de 50 mil a 100 mil habitantes. Agosto de 2024 é o prazo para cidades com menos de 50 mil habitantes.

Segundo Silva Filho, os prazos novos para os planos e implementações não podem ser entendidos como anistia para os municípios que ainda utilizam os lixões. Os prazos agora prorrogados são para disposição final adequada de rejeitos, o que significa a necessidade de separação e ações prévias de reuso, reciclagem e recuperação de resíduos, para que apenas os rejeitos sigam para aterros sanitários licenciados.

“Os municípios podem sair dessa moratória de desrespeito à lei se tiverem condição de avançar rumo a essa adequação. Caso contrário, eles estão cometendo crime ambiental, têm responsabilidade para reparo de danos e ficam irregulares perante os tribunais de contas”, diz.

Os lixões são proibidos pela Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981, que instituiu o conceito de poluição, poluidor e a responsabilidade do poluidor. Em 1995, a Lei dos Crimes Ambientais fez com que o vazamento de resíduos sólidos no solo, nos rios e nos mares virasse crime ambiental. Portanto, o lixão é proibido desde 1981 e criminalizado desde 1995.

Em 2010, a Política Nacional dos Resíduos Sólidos estabeleceu o que seria a disposição adequada dos resíduos, incluindo as diretrizes referentes à separação e recuperação de resíduos orgânicos e recicláveis e a disposição apenas de rejeitos em aterros sanitários. Rejeitos são os materiais que não são recicláveis.

A PNRS também vinculava a existência de planos municipais e estaduais de gestão de resíduos à liberação de verba federal para construir as soluções de cada localidade, como sistemas de coleta e aterros. Incentivava a formação de consórcios regionais para a viabilização econômica dos aterros. Ela dava quatro anos de prazo para o fechamento de lixões.

“Por algumas leituras simplistas, entendeu-se que lixão era permitido até 2014. Mas não era. Está proibido desde 1981 e criminalizado desde 1995”, diz Carlos Silva Filho.

Além da determinação de um sistema de remuneração fixo, outro ponto interessante na visão do representante da Abrelpe é o que trata de regras para a disposição de rejeitos.

“Nos casos em que a disposição de rejeitos nos aterros sanitários for economicamente inviável, os municípios podem optar por alternativas, como compostagem, enviar para a logística reversa ou para planta de recuperação energética”.

Aqui um parênteses: plantas de recuperação energética incluem os incineradores de resíduos, tecnologias condenadas em muitos países. A Europa acaba de aprovar um sistema de classificação de negócios sustentáveis que recomenda textualmente minimizar a incineração de resíduos.

Num dos itens referentes à economia circular, o regulamento considera que uma atividade econômica contribui para a transição para uma economia circular, em prevenção, reutilização e reciclagem dos resíduos, se “minimizar a incineração de resíduos e evitar a eliminação de resíduos, incluindo a sua deposição em aterro, de acordo com os princípios da hierarquia dos resíduos”.

O ARTIGO 20

Além da Abrelpe, a Abetre (Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes) e o Selur (Sindicato de Limpeza Urbana) se mobilizam contra o artigo 20, por considerarem que ele fere a livre concorrência.

Em documento enviado ao Ministério do Desenvolvimento Regional e ao Ministério do Meio Ambiente, também a Abren, Associação das Empresas de Recuperação Energética, se manifestou.

O texto diz que o PL nº 4.162/2019 traz “importantes e significativos avanços para permitir a delegação do serviço público de saneamento para empresas privadas” e que o instrumento de “contratos de concessão a longo prazo possibilitará a cobrança do serviço por meio de tarifa na conta de consumo conjunta ou espelhada em outros serviços públicos —como a conta de água” e que com isso haverá avanços que permitirão “a realização de investimentos na melhor gestão dos resíduos sólidos urbanos e a sua respectiva amortização”.

Lamenta, porém, que o artigo 20 permita a exclusão dos serviços de limpeza urbana e manejo de RSU (resíduos sólidos urbanos) dessas “boas práticas”. Segundo a Abren, se o artigo não for retirado, modernização dos serviços de limpeza pública e manejo de resíduos sólidos urbanos serão prejudicados.

A associação diz esperar a introdução da rota tecnológica do tratamento por meio da recuperação energética e diz que conta com a matéria prima produzida em grande escala para viabilização de projetos de tratamento térmico dos resíduos.

O documento também critica a “prorrogação dos contratos de emergência permitidos pelo artigo 20, instrumento frequentemente utilizado pelas mais de 3.000 pequenas prefeituras do país para o lançamento dos resíduos da cidade em aterros controlados ou lixões a céu aberto”.

Mara Gama

Jornalista e consultora de qualidade de texto.