Valor Econômico
15/07/2021

Por Taís Hirata

Apesar de atrasos e incertezas, setor comemora a criação de 63 blocos regionais e prevê ‘boom’ de projetos

A nova lei do saneamento básico completa um ano hoje, em meio a atrasos na regulamentação e incertezas jurídicas que ainda persistem no setor. Por outro lado, o novo marco legal já atraiu novos investidores e começa a desenhar o esperado “boom” de desestatizações pelo país.

A nova lei do saneamento básico completa um ano hoje, em meio a atrasos na regulamentação e incertezas jurídicas que ainda persistem no setor. Por outro lado, o novo marco legal já atraiu novos investidores e começa a desenhar o esperado “boom” de desestatizações pelo país.

Além dos quatro grandes leilões realizados neste último ano, o BNDES tem ao menos outros sete projetos engatilhados.

A grande onda de licitações, porém, deverá vir nos próximos anos. Só entre os onze Estados que já aprovaram sua regionalização, foram criados 63 blocos de municípios para a prestação de serviços de saneamento. Se considerados todos os Estados que já apresentaram alguma proposta de divisão regional, o número sobe para 110 lotes, segundo levantamento da Abcon (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto).

“Sabemos que nem todos os blocos se converterão em concessões privadas. Mas o volume é tão alto que se 20% disso vier a mercado já são muitos projetos. Hoje é inegável que o saneamento está avançando”, diz Percy Soares Neto, diretor executivo da entidade.

Apesar do otimismo, empresas e analistas do setor também veem uma série de desafios pela frente. Uma das principais preocupações é a judicialização contra a mudança de regras.

As investidas judiciais ocorrem em diversas frentes. A Aesbe, que reúne as empresas estaduais do setor, já tem uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que questiona a constitucionalidade da própria lei. Em breve, a entidade deverá abrir um novo processo no STF, desta vez contra a regulamentação do marco legal, afirma o presidente da associação, Marcus Vinícius Neves.

O maior alvo das críticas é o decreto que definiu os critérios de comprovação econômico-financeira das empresas. Na prática, a norma pode obrigar companhias a abrir mão de contratos, caso não consigam provar que têm fôlego financeiro para fazer os investimentos necessários.

“Muitas estatais não cumprem os requisitos, então a expectativa é que haja muita judicialização em relação a esse ponto”, avalia André Freire, sócio do Mattos Filho. Um levantamento do Valor Data apontou que ao menos dez empresas estaduais deverão ter dificuldade para se adequar.

As estatais argumentam que a crítica não é sobre a criação de metas e exigências, e reconhecem a importância da nova lei. Porém, a avaliação é que o decreto, da forma como foi editado, buscou tirar as companhias públicas do mercado, afirma Neves.

O governo deixou clara a intenção de excluir as estatais. Não estamos atacando o conceito, a necessidade de criar exigências. Mas somos contrários a alguns pontos do decreto que causam transtorno”, diz ele. Entre as críticas estão o prazo para a entrega dos documentos, considerado exíguo, e a restrição para formação de Parcerias Público Privadas (PPPs) pelas empresas públicas.

Para advogados do setor ouvidos pela reportagem, as ações judiciais contra o decreto têm potencial considerável de sucesso.

Há ainda outros questionamentos judiciais em curso, que ameaçam um aspecto diferente da lei: a formação de blocos regionais. Na visão de alguns analistas, a probabilidade de vitória nesses casos é menor. Ainda assim, há certo temor por parte do setor privado.

As ações em curso no STF sobre o tema questionam a formação da região metropolitana de Maceió (AL) – que foi leiloada em setembro de 2020 e assumida pela BRK Ambiental. Os processos partem de partidos como PSB (que governa a capital Maceió) e o PP (partido do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que é de Alagoas).

Para alguns, trata-se mais de uma briga política regional do que um embate técnico. Porém, há receio de que a disputa inspire ações em outros Estados.

“As decisões judiciais têm sido favoráveis à lei do saneamento. Porém, a judicialização preocupa porque, enquanto as ações seguem pendentes, há dois efeitos: gera-se insegurança sobre as regras do jogo e abre-se espaço para o surgimento de novas ações”, afirma o advogado Rafael Vanzella, sócio do Machado Meyer.

Apesar do temor, os questionamentos não têm prejudicado o avanço de novos projetos e a formação dos blocos regionais, destaca Venilton Tadini, presidente executivo da Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base). “O caso da Cedae [Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro] é um exemplo emblemático. Foram superados os questionamentos, em um Estado grande, com alta complexidade”, diz ele.

Outra preocupação é com o ritmo de implementação da lei. “O processo precisa ser mais célere. Não podemos postergar regulamentações. Os Estados também demoraram muito para fazer a regionalização. São atrasos que impactam lá na frente. Seria importante que, nesse próximo ano, o processo se acelere”, avalia Elias de Souza, sócio da Deloitte.

Um exemplo de atraso é a regulamentação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que, com a nova lei, passou a assumir a função de órgão regulador federal do setor. Pelo cronograma, há três normas que deveriam ter saído no primeiro semestre, mas seguem em aberto.

Procurada, a ANA afirmou que “tem atuado para desempenhar adequadamente sua atribuição, mesmo com os desafios em torno dessa nova competência legal”. O órgão também diz que tem se estruturado internamente e buscado ampliar seu quadro técnico.

Para Neves, da Aesbe, o atraso prejudica o processo de adequação das empresas dentro do prazo estipulado. “Sem as normas da ANA sobre os indicadores de qualidade, como vamos adaptar contratos à nova lei? Que metas devemos considerar?”, questiona.

Para a Abcon, a demora na edição das regras não é um problema grande. “A ANA precisa vencer etapas importantes na curva de aprendizado. É melhor que haja um atraso, mas que a norma saia com qualidade”, afirma Soares.

Outro desafio para os próximos anos será a estruturação e o financiamento dos projetos – principalmente considerando o volume exorbitante de investimentos previstos até 2040. A estimativa é que sejam necessários R$ 750 bilhões para a universalização, segundo o International Finance Corporation (IFC), braço de investimentos do Banco Mundial no setor privado.

Para Carlos Leiria Pinto, que lidera as operações do IFC no Brasil, o sucesso dos leilões de saneamento mostra que o país está no caminho certo. Porém, o executivo também avalia que há uma série de passos pela frente, como a atração de novos operadores. “As empresas que estão no Brasil não são suficientes para o volume de investimentos. É necessário atrair estrangeiros. Há muito interesse, mas é preciso dar confiança na estabilidade das regras.”

Hoje, há ao menos cinco grandes grupos privados no setor, mas empresas de outras áreas, como a Equatorial Energia, já têm tentado entrar no segmento.

Desde a aprovação da lei, os operadores tradicionais também conseguiram atrair novos investidores para seu capital. É o caso do fundo de pensão canadense Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB), que pagou R$ 1,1 bilhão para entrar na Iguá Saneamento, e a Itaúsa, que adquiriu uma fatia da Aegea Saneamento por R$ 1,3 bilhão.