Folha de São Paulo
20/07/2020

Por Ivan Martínez-Vargas

Polêmica está concentrada na retirada de dispositivos que haviam sido negociados com Congresso

Os vetos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro ao marco do saneamento beneficiariam investidores privados no setor, mas, se forem mantidos, deverão trazer mais litígios e ações na Justiça, segundo especialistas.

Bolsonaro descumpriu um acordo político costurado por governadores e companhias estaduais com o Congresso, setores do governo e a iniciativa privada ao vetar 12 trechos da lei no último dia 15.

A atitude foi criticada por parlamentares como o presidente do Senado, David Alcolumbre (DEM-AP), e pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que foi relator do projeto.

Os vetos podem ser derrubados por maioria absoluta dos parlamentares em sessão conjunta de Câmara e Senado.

“Toda a lógica do governo reafirma a posição do Ministério da Economia de promover a máxima abertura do país para investimentos privados. Na costura política, houve consenso de tirar um pouco o pé do acelerador, o que é ignorado agora. Se forçar a mão, o mais provável é a judicialização”, diz Luís Felipe Valerim, professor da FGV Direito.

O ponto mais polêmico é o veto à possibilidade de as companhias estaduais negociarem até março de 2022 com os municípios onde atuam a transformação de seus contratos em concessões que poderiam ter duração de até 30 anos.

O item era considerado essencial pelas estaduais para garantir uma regra de transição e sobrevida às estatais no novo modelo, que privilegia a competição com a iniciativa privada por concessões de água e esgoto.

A justificativa do governo é que o dispositivo prolongaria “de forma demasiada a situação atual” do setor.

“A proposta, além de limitar a livre iniciativa e a livre concorrência, está em descompasso com os objetivos do novo marco legal do saneamento básico que orienta a celebração de contratos de concessão, mediante prévia licitação”, diz o texto assinado pelo presidente.

“O texto condicionava a renovação à comprovação de que a estatal tinha capacidade técnica e financeira de cumprir metas de universalização dos serviços. O veto descumpriu um acordo político, era um ponto importante para governadores”, diz Rodrigo Bertoccelli, sócio do Felsberg.

Para Jerson Kelman, ex-presidente da Sabesp (2015-2018) e da ANA (Agência Nacional de Águas, 2001-2004), o dispositivo original deveria ser mantido.

“Havia um equilíbrio razoável no texto, eu não teria feito esse veto. Quem quisesse ter espaço para arrumar suas estatais para uma eventual privatização, por exemplo, teria uma janela de oportunidade”, afirma Kelman.

“Mantido o veto, o país sai ganhando se de fato existir um exército de empresas e muito capital privado interessado em assumir o espaço estatal. Interesse existe, mas temo que apertar demais o acelerador pode ter efeito contraproducente, com oferta de projetos maior que a demanda”, diz.

Para as operadoras privadas de água e esgoto, que hoje detêm só 6% do mercado, o veto aceleraria os investimentos.

“Entendemos as razões dos vetos, dariam maior velocidade de transição para o novo modelo. Reconhecemos que houve um acordo político, e estamos preparados para os cenários com ou sem [a possibilidade da renovação de contratos 30 anos]”, diz Percy Soares Neto, diretor-executivo da Abcon (associação do setor privado de saneamento).

Outros pontos criticados pelas estaduais são o veto à possibilidade de estatais poderem fazer subdelegações de mais de 25% de seus contratos a outras empresas e à regra que não aplicaria o marco às atividades de limpeza urbana e tratamento de resíduos.

No texto aprovado pelo Congresso, as subcontratações de mais de 25% poderiam ser feitas se o recurso obtido fosse revertido em investimentos para universalizar serviços ou para pagamento de incentivos previstos em planos de demissão voluntária das estatais.

“Era um arranjo importante para que estatais pudessem trazer empresas privadas para seus contratos, mas as exceções sumiram. Voltou o limite de 25% de subdelegação, que pode ser feito se houver autorização do município”, afirma Valerim.

Para o setor privado, uma eventual volta da possibilidade de as estatais transformarem seus contratos atuais em concessões deveria vir acompanhada também da flexibilização do limite de subdelegação.

“Se houver isso, precisa estar casado. A renovação por 30 anos permite sobrevida ao modelo de mercado fechado. Se isso ocorrer, é importante permitir que as estatais recorram à subdelegação e que empresas privadas possam oferecer os serviços”, afirma Soares Neto.

O texto aprovado pelo Congresso trazia ainda uma regra para a indenização de investimentos feitos pelas companhias de saneamento e que não foram amortizadas durante os contratos, mas Bolsonaro retirou o trecho. Agora, as balizas serão definidas inteiramente por meio de normas de órgãos reguladores como a ANA.

“A forma prevista permitia a adoção de uma norma contábil que valorizasse os bens das estatais, o que poderia ser útil para aumentar seu valor de mercado em uma privatização. O veto, na prática, pode aumentar o apetite das estatais por ações na Justiça para discutir formar de calcular a indenização”, afirma Valerim.

Para o advogado Ordélio Azevedo Sette, no entanto, o veto é positivo porque deixa que os órgãos reguladores como a ANA estabeleçam os critérios para o cálculo de indenizações.

“É pouco provável que seja um único critério para todas as estaduais, precisam ser adaptáveis às realidades das empresas. Fixar em lei como será a avaliação dos ativos não faz sentido e não é a prática no mundo”, afirma ele.