Por Stela Goldenstein e Iraúna Bonilha – Valor Econômico

24/05/2019 – 05:00

O estresse hídrico, condicionado por fatores naturais e pelo padrão irracional de uso do solo e das águas, afeta o abastecimento urbano e as atividades econômicas de várias regiões do Brasil. A situação tende a piorar face as mudanças climáticas e exige um conjunto consistente de investimentos: conservação de mananciais; redução de perdas; despoluição dos corpos hídricos; fomento a tecnologias e processos poupadores de água; armazenamento de água superficial, e o reúso planejado de água, uma das estratégias mundialmente adotadas para lidar com a escassez hídrica, especialmente em regiões onde a demanda de água supera a oferta e possibilidades de adução de novas fontes.

O reúso potável demanda tratamento muito completo. O reúso não-potável exige redes dedicadas de distribuição desde as Estações de Tratamento de Esgotos (ETEs) até os locais de consumo na construção civil; descargas de bacias sanitárias; lavagem de veículos e pavimentos; combate a incêndio; irrigação; aquicultura, processos industriais, etc. No Brasil, o mais frequente é o reúso de água indireto e não planejado: os efluentes sanitários, com ou sem tratamento prévio, são lançados e diluídos em corpos d’água e acabam sendo captados por usuários situados a jusante.

Atividades menos exigentes quanto à qualidade da água ainda consomem parte considerável da água potável, com custos desnecessários. Os grandes consumidores já vêm racionalizando processos, mas o reúso de água de fontes externas ainda é incipiente no Brasil. Tratamos cerca de 40% do esgoto gerado no país, equivalente a 1/3 da vazão captada pelo setor industrial. Parcela dos efluentes tratados poderia destinar-se a usos industriais não potáveis, reduzindo a competição por mananciais de interesse para o abastecimento público.

Em 2012 concretizou-se em São Paulo a primeira experiência brasileira de reúso industrial de grande porte, o Aquapolo, que fornece 650 L/s de água de reúso para o Polo Petroquímico de Capuava, município de Mauá. Fruto de parceria entre a BRK Ambiental e a Sabesp, com contrato com validade de 41 anos, recebe o efluente tratado pela Sabesp na ETE ABC, faz tratamento complementar e o adequa a padrões de qualidade determinados pelas indústrias, que usam o insumo em torres de resfriamento, geração de vapor e caldeiras.

Estas indústrias deixaram de usar 900 milhões de L/mês antes captados no rio Tamanduateí, liberando água para a diluição dos esgotos despejados a jusante, e permitindo aos usuários se resguardarem contra prejuízos decorrentes de crises hídricas. É o caso da Braskem, petroquímica que firmou com o Aquapolo contrato de fornecimento para 40 anos, garantindo segurança hídrica a suas três unidades locais, que passaram pela crise hídrica de 2014-15 sem restrição produtiva, com aumento na produção e evitando prejuízos de centenas de milhões de reais.

Essa água de melhor qualidade permitiu economia adicional com o aumento da recirculação interna de água, redução de serviços de manutenção e substituição de equipamentos. Este caso mostra que contratos de compra de água de reuso devem ser considerados como um seguro, valor a ser pago para impedir potencial perda financeira maior. Empresas que ainda fazem análise econômica imediatista consideram altos os custos inerentes ao reúso, desconsiderando o risco hídrico e o potencial prejuízo associado ao agravamento da escassez.

Grandes consumidores já racionalizam processos, mas o reúso de água de fontes externas ainda é incipiente no país

A equação financeira de investimentos de reúso industrial direto depende de custos diversos: logística do transporte desde as ETEs até as indústrias; tratamento suplementar para adequação às necessidades de cada usuário; avaliação destes custos frente ao valor das outorgas de direito de captação de água bruta (que não refletem a escassez); e custos inerentes ao risco de escassez e redução dos volumes outorgados.

Há ETEs operadas por prestadores públicos ou privados que geram efluentes com qualidade suficiente para que se discuta seu reúso para fins industriais. Porém a maioria necessita de investimentos na modernização de instalações e processos, para que gerem efluentes de melhor qualidade. Estes investimentos, assim como a melhoria da qualidade dos corpos d’água podem ser, em muitos casos, parcialmente financiados pela venda de efluentes tratados.

Novos projetos demandam segurança jurídica para contratos das empresas de saneamento com usuários de água de reúso; reavaliar outorgas de captação de água e lançamento de efluentes; introduzir ganhos acessórios aos contratos de serviços de saneamento, entre outras questões. Cenários de crise econômica e insuficiente iniciativa pública afastam investimentos, fazendo com que as empresas prefiram manter outorgas já obtidas, ainda que sejam, por definição, instrumentos precários.

No entanto, a implantação de sistemas de reúso pode levar três anos ou mais e esperar por cenários de maior escassez pode ser escolha imprudente. A suspensão das outorgas nas situações de escassez excepcional não é novidade e estas serão sempre mais precárias que os contratos comerciais de fornecimento de água de reúso.

O 2030 Water Resources Group, entidade vinculada ao Banco Mundial, voltada à articulação intersetorial de ações estratégicas para a segurança hídrica, discute os obstáculos que inibem investimentos no reúso direto de efluentes de ETEs nas bacias críticas do Estado de São Paulo. Em 2017, organizou um grupo de trabalho com empresas de saneamento para propor adequações simplificadoras à norma paulista sobre reúso para fins urbanos. A proposta está em discussão pelos órgãos reguladores. Em 2018, o 2030WRG uniu-se ao Comitê e à Agência das Bacias PCJ para discutir um Plano Regional de Reúso Industrial de Água, que incluirá análise de viabilidade de projetos-pilotos. Atualmente apoia a SABESP na otimização dos processos de ETEs, viabilizando a venda de subprodutos, inclusive efluentes tratados, numa estratégia de economia circular.

Também fruto das discussões promovidas pelo 2030WRG, o Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE) do Estado de São Paulo, em elaboração pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, adotará como orientação de localização de novos distritos industriais a proximidade de ETEs, facilitando a logística da entrega da água de reúso.

O negócio do reúso está recém começando no país, e necessita estudos aprofundados por bacia, principalmente naquelas de maior risco hídrico. Mas o debate sobre o reúso de água como estratégia auxiliar da segurança hídrica avança e provoca mudanças culturais no setor empresarial e empresas de saneamento, para que considerem o risco hídrico com largueza de visão.

Stela Goldenstein, geógrafa, é coordenadora nacional do 2030 Water Resources Group e atua em planejamento ambiental, recursos hídricos e saneamento. Foi Secretária de Meio Ambiente no Estado e na cidade de São Paulo.

Iraúna Bonilha é arquiteto, mestre em gestão urbana da água e atua no 2030 WRG.