Estadão
07/07/2020

Por Humberto Dantas

Autores do texto:

Bruno Magalhães é líder MLG, pós-graduado no Master em Liderança e Gestão Pública (MLG), mestre em Democracia y Buen Gobierno pela Universidad de Salamanca. Servidor público estadual em Minas Gerais, coordena o Curso Superior de Administração Pública da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro/MG. É estudante de mestrado em Gestão de Políticas Públicas na USP e da especialização em Estatística pela UFMG.

Thiago Pedrino Simão é líder MLG, pós-graduado no Master em Liderança e Gestão Pública (MLG), em Administração Pública e em Direito Administrativo e Constitucional. É Chefe de Gabinete do Deputado Federal Geninho Zuliani (DEM-SP), Relator da Comissão Especial do Marco Legal do Saneamento na Câmara dos Deputados.

No texto, os autores trazem à tona a pauta do Novo Marco do Saneamento, pontuando que o projeto é de extrema importância no sentido de superar um problema estrutural. Para isso, trazem avaliações positivas e críticas, principalmente no que diz respeito à superação das desigualdades regionais. Entenda:

A fins de junho, o Senado aprovou o texto final do novo marco legal do saneamento básico (PL 4.162/2019), sem acréscimo ao relatório aprovado na Câmara dos Deputados em meados de dezembro último. A aprovação animou o debate nas redes sociais. Entre entusiastas havia os que comemoravam uma solução definitiva para o histórico problema do saneamento básico no país. Entre opositores houve quem lamentasse a entrega desse importante serviço público à iniciativa privada. Este artigo argumenta que o projeto não garante uma coisa nem outra, mas é uma importante iniciativa no sentido de agregar instrumentos de política pública para a superação de um problema estrutural que há muito passou do nível da urgência, com drásticas proporções na saúde pública, na agricultura, na segurança alimentar e no desenvolvimento social e econômico.

Primeiramente, é preciso compreender a situação do acesso aos serviços de saneamento no Brasil. Se por um lado o acesso à água no país é quase universal, representando 97,6% dos domicílios com acesso à água canalizada, por outro a situação do saneamento básico é dramática, apenas 62,3% dos domicílios conectados à rede geral de esgoto sanitário e outros 5,6% com fossa séptica ligada à rede. A coleta direta de lixo, por sua vez, é realizada em 84,4% dos municípios. Importante ressaltar a expressiva desigualdade regional. Na região norte, por exemplo, 29,6% dos domicílios não possuem rede de esgoto, sendo seu despejo direto na natureza. A região nordeste apresenta índices de 22,1%, enquanto na região sudeste o percentual é de 5,5%. Os lixões, que deveriam ter desaparecido em 2014, ainda existem em 2.810 municípios (o Brasil tem 5.570). Os dados são do IBGE e do Plano Nacional de Resíduos Sólidos.

Pois bem, diante desse cenário, as principais medidas apresentadas pelo novo marco legal do saneamento básico são: (i) possibilidade de prestação direta do serviço pelo município ou continuidade dos contratos de programas já firmados entre os entes municipais e as empresas públicas estaduais; (ii) possibilidade de regularização das situações de fato existentes, mediante conversão em contratos de programa até março de 2022; e (iii) estabelecimento de contrato de concessão, mediante aprovação do Poder Executivo Titular ou privatização, mediante aprovação da respectiva Câmara Municipal, com prioridade no recebimento de recursos federais. Vamos a elas.

É fundamental ressaltar que o novo marco do saneamento básico não altera a possibilidade de prestação direta do serviço pelo próprio município. E caso o ente municipal tenha firmado contrato de programa com empresas públicas estaduais de saneamento, em obediência ao ato jurídico perfeito, estes serão resguardados. Ademais, a regionalização dos serviços é estimulada, sejam por meio de blocos municipais que serão concedidos para operadoras privadas ou por meio da previsão da possibilidade de criação de consórcios intermunicipais de saneamento, que podem prestar o serviço diretamente por meio da criação de uma autarquia intermunicipal.

Essa alternativa é importante, uma vez que grande parte dos municípios de pequeno porte não possuem capacidade financeira para arcar com a provisão do serviço, que requer expansão de infra-estrutura. A saída regional, possibilita o intercâmbio local de capacidades técnicas e financeiras, além de permitir combinar ganhos de escala em áreas adensadas com o investimento em áreas menos populosas. Outro ponto de destaque é que a gestão direta dos serviços, ou mesmo a contratação/concessão dos mesmos estará orientada por metas claras de resultados, com vistas à universalização do acesso à água potável (99%) e aos serviços de coleta e tratamento de esgotos (90%). Voltaremos a esse ponto mais adiante. Por hora, vamos à segunda medida.

O projeto de lei faculta também ao município a regularização de sua atual situação de fato por até 30 anos. Nos casos em que o serviço existe, mas não há correspondente contratualização, tem-se exigência de formalizar e adequar os contratos até março de 2022. Tal raciocínio também se aplica no caso em que há contratos que já perderam a vigência, o que permite sua regularização no mesmo prazo. As exigências estabelecidas são a comprovação de que a contratada possui capacidade econômico-financeira para assumir os serviços, exigência já existente na lei de licitações, mas que requer regulação no caso do saneamento, e de que os contratos prevejam as metas de universalização supracitadas.

Isto posto, chega-se finalmente à medida que causou polêmica nas redes, a exigência de concessão e privatização dos serviços de saneamento. Eis aqui, uma diferenciação importante: a concessão é diferente da privatização. Mediante concessão, o ente público outorga o direito de exploração de determinado serviço ao ente privado, selecionado mediante licitação (competição entre propostas), por tempo determinado, após o qual o serviço, que nunca deixou de ser público, volta para a administração estatal. A privatização, por outro lado, é a retirada do serviço da esfera estatal, que passa ao papel de regulação da oferta do mercado privado, tal como foi feito nas telecomunicações ou no setor extrativista mineral.

Aqui cabe a crítica, por ser um bem não-rival e não-excludente, o saneamento básico constitui-se como monopólio natural. Ademais, os benefícios do saneamento excedem em muito seus custos, seja do ponto de vista da saúde pública e do bem-estar das pessoas, seja pela perspectiva ambiental. Isso significa que mesmo pelas leituras econômicas mais ortodoxas, o saneamento não é passível de privatização, pois constitui uma clássica falha de mercado. Não à toa, abundam alhures as experiências de re-estatização dos serviços, embora suas causas sejam distintas, tendo por vezes a iniciativa privada atingido as metas de universalização, permitindo a retomada para a gestão estatal.

A história é outra com a concessão, que parece ser a real aposta do marco regulatório. A concessão pode ser entendida como um instrumento de política pública, isto é, uma ferramenta lançada pelo poder público para garantir o alcance de objetivos pré-definidos. É, portanto, um meio, já que o fim é o da universalização. Um meio alternativo à prestação direta, semelhante ao estabelecimento de um contrato mais duradouro, mas que não implica em hipótese alguma abdicar do status público do serviço. Mas então qual a diferença do atual marco em relação às leis anteriores? A diferença reside, por um lado no sistema vinculante de metas, por outro na segurança jurídica para atuação do parceiro privado.

Este é o ponto central, e que parece ter infelizmente fugido ao debate. Importa, mais que tudo, focar na superação da situação absolutamente crítica a que nos sujeitamos ano após ano, em que milhões de brasileiros não possuem esgoto em suas casas e uma parcela pequena – mas ainda assim grande demais – não possui acesso à água limpa para beber. E nesse ponto o projeto é assertivo ao exigir expressamente a universalização, estabelecida por uma um sistema de metas cujos prazos e condições são aplicáveis igualmente aos governos e empresas que se proponham a prestar os serviços. Há anos que vimos enfrentando a questão do saneamento com exclusividade da atuação pública, com importantes avanços, é verdade. Mas também com limites mais que evidentes. Nesse sentido, a diversificação dos meios de enfrentamento deste problema estrutural deveria ser celebrado como ampliação da capacidade de atuação estatal, que poderá optar segundo sua realidade histórica e local. Além disso, do ponto de vista da avaliação de políticas públicas, a prestação de serviços por formas alternativas permite a comparação de modelos, identificando contextos e aspectos que levam a melhores resultados.

Isto posto, é certo que os instrumentos de políticas públicas tampouco são neutros, na medida que produzem consequências institucionais e efeitos de feedback, capazes de gerar a perpetuação de modelos não ótimos. Por isso, dedicaremos as últimas linhas para apresentar um par de críticas ao projeto. Se bem o texto apresenta a concessão como alternativa à prestação do serviço de saneamento, avaliamos que a proposta é tímida no que diz respeito à superação das desigualdades regionais supracitadas. Isso porque parece atribuir prioridade na obtenção de recursos federais atrelada à modalidade de fornecimento do serviço (notadamente concessão ou regulação por outro ente federativo).

Embora estimule a atuação regional, o texto não avança no sentido de garantir o devido suporte técnico especializado para armar o imbricado arcabouço institucional necessário ao estabelecimento de consórcios, ou mesmo à modelagem de concessões. Por fim, o texto é silente quanto às possibilidade de estabelecimento de parcerias locais de fortalecimento da sociedade civil e de estímulo à geração de tecnologias sociais, além de avançar pouco no estabelecimento de critérios mínimos de gratuidade, embora preveja subsídios à pessoas de baixa renda. Mas tais mecanismos tampouco estão ausentes, foram delegados à modelagem dos serviços, reforçando a hipótese de que o marco por si só não é suficiente para garantir os resultados a que se propõe.

É preciso, complementarmente, garantir capacidade local de atuação e capacidade nacional de regulação, sem captura política, corporativa ou privada. E isso certamente passa por uma administração pública profissionalizada e treinada, uma sociedade civil igualmente capaz e vigilante, e um sistema político responsivo.