Estadão
16/02/2020

Por Amanda Pupo

Novo marco entrou em vigor em julho do ano passado com a promessa de universalizar os serviços de saneamento em todo o País

BRASÍLIA- A demora do governo Jair Bolsonaro em editar um dos decretos que regulamentam o marco legal do saneamento acendeu um alerta sobre a viabilidade dos prazos previstos na lei e uma eventual pressão para aumentá-los no Congresso. O movimento exigiria uma revisão do texto legal, o que já gera receio entre membros da equipe econômica, que querem evitar essa brecha a todo custo. O novo marco entrou em vigor em julho do ano passado com a promessa de universalizar os serviços de saneamento no País.

As regras que ditarão a capacidade financeira das empresas do setor – que funcionará como um regra de corte no mercado – ainda não saíram, mesmo com a data final para as empresas comprovarem que têm estofo para fazer os investimentos necessários se aproximando. O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) defende que o prazo definido na lei – março de 2022 – é suficiente, sem necessidade de prorrogação.

Mas esse não é o discurso de parte do setor, principalmente das companhias públicas. Já entrou no radar da Associação das Empresas Estaduais de Saneamento Básico (Aesbe) uma eventual movimentação no Congresso para dilatar prazos. Segundo o presidente da Aesbe, Marcus Vinicius Neves, o assunto deve ser debatido na próxima assembleia da entidade, prevista para o início de março. Por ora, não há uma posição fechada. Neves também comanda a Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa).

O imbróglio envolve a decisão do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de publicar o aguardado decreto somente após deputados e senadores analisarem se derrubam ou mantêm os vetos do presidente Jair Bolsonaro a trechos do novo marco legal, o que é mal visto pela Aesbe. Sob orientação do MDR e da Economia, Bolsonaro barrou do texto a possibilidade de as companhias estaduais de saneamento renovarem por mais 30 anos os contratos para prestação de serviços nos municípios, fechados sem licitação. Pela nova lei, o processo concorrencial é regra. A ação do presidente irritou líderes do Congresso, empresas públicas e governadores.

Como já mostrou o Estadão/Broadcast, a escolha é uma estratégia informal da pasta. O MDR não quer editar o decreto agora com receio de que as normas afetem o humor das bancadas e dos chefes estaduais, arriscando a manutenção do veto pelo Legislativo. A avaliação é de que a prorrogação dos contratos das empresas públicas estaduais – caso o veto caia – atrasaria a universalização. Hoje a prestação dos serviços é dominada pelas companhias estaduais, cuja capacidade de investimento é questionada. No Brasil, uma parcela de 46% da população ainda vive sem acesso a rede de esgoto e 16% não são atendidos por rede de abastecimento de água.

Quanto a esse ponto, o Ministério da Economia tem a mesma posição. Mas membros da equipe de Paulo Guedes ouvidos reservadamente não acreditam que o decreto possa aguardar essa deliberação pelo Congresso. A área econômica queria ver o ato publicado ainda em janeiro, com receio de que o atraso dê força ao argumento de que os prazos estão curtos. O medo é de que o trabalho desenvolvido durante o ano passado no Parlamento vá por ‘água abaixo’.

O presidente da Aesbe afirma que o processo de adaptação ao novo marco é como uma “engrenagem”. Com uma delas paralisada, todo o resto é afetado. Os aditivos com as metas de universalização do novo marco precisam ser assinados até 31 de março de 2022. Até lá, o processo de comprovação da capacidade econômico-financeira precisará estar pronto. Outra data-limite, mais próxima, também preocupa. Os Estados têm até julho deste ano para definir as unidades regionais de saneamento. A elaboração dos planos de negócio das empresas, portanto, já demandaria as regras de capacidade que estarão no ato do Executivo, alega Neves.

“Como eu vou montar os blocos regionais se eu não sei como serei avaliado?”, questionou o presidente da Aesbe. Segundo ele, apesar de decisões ainda não terem sido tomadas sobre os prazos, o tema está na pauta e já é inclusive discutido pontualmente com alguns parlamentares, que estariam “sensíveis” ao tema.

Por outro lado, a associação que representa as concessionárias privadas do setor, Abcon, vê a discussão sobre aumento de prazos como uma estratégia protelatória para a não execução do novo marco. “Não há nenhum impedimento, desde o dia da aprovação da lei, que os Estados e as companhias estaduais começassem a trabalhar na direção da lei”, disse o diretor da Abcon, Percy Soares. Para ele, independente do decreto, as companhias já são capazes de saber se têm capacidade ou não de levar em frente os investimentos necessários.

“A narrativa vai se transformando no objetivo principal, que é de não mexer no status quo das companhias estatais, postergar a competição, a abertura desse mercado”, avaliou Soares.

Influência

A associação das estatais, juntamente com os governadores, exerceu uma influência importante durante a tramitação do novo marco do saneamento. A Câmara só votou o projeto após ser incluída no texto a permissão para renovação dos contratos dessas empresas – agora barrada pelo veto. À época, o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), então líder do PP, era um dos parlamentares que chamava a atenção para a falta de acordo que existia em torno da proposta, até que veio a ‘colher de chá’ dada às empresas públicas.

Especialista na estruturação e regulação de concessões e PPPs, o advogado Marcelo Rangel Lennertz concorda que os prazos estão apertados. Mas, para ele, ainda é prematuro cravar uma necessidade de alteração. “Se quiserem reinventar a roda, criando requisitos desnecessariamente detalhados e restritivos, isso pode inviabilizar os prazos que estão hoje previstos”, ponderou Lennertz, que é sócio do Portugal Ribeiro Advogados. Ele lamentou que até o momento não exista uma minuta do decreto disponível para consulta pública.

Procurada pela reportagem, a pasta do Desenvolvimento Regional afirmou que o prazo até março de 2022 é suficiente para que as companhias elaborem o planejamento e a comprovação de capacidade de investimentos visando à universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. “Sem necessidade de prorrogação”, afirmou em nota.

O ministério ainda disse acreditar que, passada a eleição das mesas diretoras da Câmara e do Senado, os vetos serão analisados brevemente pelo Congresso. “Tão logo isso ocorra, o decreto será publicado”, declarou a pasta. O Ministério da Economia respondeu que não comentaria.

Decreto não é ‘mera ferramenta’

Responsável pelas ações de saneamento no governo federal, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) afirmou que o decreto que traçará as regras de capacidade econômico-financeira das empresas do setor não é construído como uma “mera ferramenta subjetiva de exclusão de empresas públicas do setor”.

“Esperamos que realmente haja isonomia, que esse decreto saia, independentemente do veto. Não é porque o veto pode cair que pode ter um decreto para mais ou menos, ou o decreto sair ao sabor de empresa pública ou privada”, disse ao Broadcast o presidente da Aesbe, Marcus Vinicius Neves. Segundo ele, a associação já discutiu o tema com o MDR, quando foi “muito bem” recebida pelo secretário nacional de Saneamento da pasta, Pedro Maranhão.

A regra de capacidade econômico-financeira tem uma ligação direta com a possibilidade de renovação dos contratos das empresas públicas – agora barrada. Esses negócios só poderiam ser renovados caso as estatais comprovassem que têm viabilidade financeira para dar conta das metas de universalização. Com isso, as empresas públicas temem que o destino do veto – se será mantido ou não – influencie na formulação do decreto que dará base para a avaliação das empresas.

O MDR descarta essa “subjetividade”. “Vale ressaltar que o decreto está sendo construído não como uma mera ferramenta subjetiva de exclusão de empresas públicas do setor. Trata-se tão somente de garantir, por critérios objetivos, que empresas incapazes de investir ou se reestruturem para possibilitar a universalização dos serviços ou deem lugar para empresas mais eficientes”, afirmou o ministério em nota ao Estadão/Broadcast.