Folha de São Paulo
16/12/2019

Nada como ver disputas sérias serem transformadas em flá-flu. Possível assistir os debates sobre o novo marco legal do saneamento básico aprovado na Câmara dos Deputados na última quarta-feira (11) como quem assiste a uma partida de futebol: você é do time da eficiência privada-Estado-é-corrupto ou do time do saneamento-público-é-direito-humano-não mercadoria?

Sejam os privatistas, sejam os publicistas, ambos pressupõem, sem evidência conclusiva, a superioridade manifesta dos seus respectivos argumentos. Como o Brasil é o país da piada pronta, dois dias depois da aprovação do marco legal, PF deflagrou nesta sexta (13) a Operação Águas Claras, trazendo à luz alegações de fraudes na empresa de saneamento do  Paraná (Sanepar).

Cooptado, debate legislativo ofuscou dilemas estruturais, inclusive os avanços que o marco traz. Ofuscou-se distinção entre eficiência em operação de serviços de saneamento, de um lado, e políticas públicas necessárias para investimento em universalização, de outro.

Avança o marco em determinar metas de universalização de acesso ao saneamento. Hoje, maioria dos contratos de saneamento não possui metas, segundo estudo da FGV. Carece, no entanto, o marco legal de clareza a respeito de como tais metas serão de fato cumpridas. Segundo Ranking do Saneamento 2019 do Instituto Trata Brasil, as melhores cidades em saneamento investiram 4 vezes mais que as piores cidades no Brasil. Abastecimento de água recebe há décadas investimentos, enquanto rede de esgoto é precária. Investimento privado por si reproduzirá, ao invés de enfrentar, tal disparidade.

Aos que sejam a favor da primazia do setor público nesta seara, recai a mea culpa por ter mantido desde 2008 os investimentos na área na casa de 10 a 15 bilhões, enquanto dados corrigidos do Plano Nacional de Saneamento Básico estimam que seriam necessários 25 bilhões ao ano entre 2019 e 2033. Aos que sejam a favor da primazia da iniciativa privada nesta seara, pergunta-se em que o marco avança para fechar esta conta. Tampouco desidratar FGTS como propõe Paulo Guedes ajudará. Fundo emprestou bilhões nas últimas duas décadas para projetos de saneamento.

Duvida-se que, em contextos com infraestrutura de esgoto precarizada, haja incentivo privado para tal investimento. Ao campo progressista, ao invés de citar processos de reestatização em cidades europeias, mais valeria olhar para o caso de Manaus. Entre as 100 maiores cidades, Manaus ocupa a 98º posição. Desde 2012 sob concessão para uma empresa privada, a capital do Amazonas amarga rede de 12% de esgoto, embora o alcance da rede de água ultrapasse 80%.

Setor privado é mais eficiente na prestação de serviços de saneamento? Bem, devagar com o andor. Uma coisa é o investimento privado na operação com base em uma infraestrutura já existente (de água potável, por exemplo), outra coisa é a carência de aporte privado em infraestrutura necessária para universalização (da rede de esgoto). Uma coisa é empresa privada ser eficiente em Niterói, outra coisa é em Manaus.

Evidência de redução de mortalidade infantil depois da privatização da água na Argentina, como traz o famoso estudo “Water for Life” (2002) não nos permite descartar por completo o papel do setor privado. Em parceria com o poder publico e sob sua regulação, pode ser um avanço operacional em determinados contextos. No entanto, imbricações literalmente tóxicas entre lógica de mercado e acesso a saneamento em Flint (Michigan) e Cidade do Cabo (África do Sul) trazem contrapontos preocupantes.

Ao setor carece racionalidade. Grande parcela dos municípios não possui política no setor. Avança o marco ao incumbir à Agência Nacional de Águas a tarefa de determinar diretrizes para a regulação do serviço. Como a Agência navegará a guerra de interesses é motivo de atenção. Ademais, marco legal regionaliza saneamento com a possibilidade de blocos de cidades serem montados. Fica a dúvida se tal solução, boa à primeira vista, não reproduz as companhias de saneamento estaduais estabelecidas desde os anos 70.

Saneamento público, para não ser mercantilizado, pressupõe planejamento como política pública. Campo progressista poderia utilizar esta oportunidade para fomentar políticas territorializadas claras, em especial para assentamentos precários. Deveriam, igualmente, reformar o marco legal para soar mais como uma política capaz de enfrentar os atrasos em infraestrutura e operação.

Sem contextualizar os fortes grupos de interesse por trás do flá-flu – de um lado, corporativismo estatal, de outro empresas privadas – o que era análise lê-se como ingenuidade.

Thiago Amparo
Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.