Valor Econômico
31/05/2021

Por Leticia Fucuchima e Alessandra Saraiva

Apagões pontuais poderiam ocorrer em horários de pico no 2º semestre, a depender da situação dos reservatórios

O agravamento da crise hídrica, a pior dos últimos 91 anos, poderá fazer com que o Brasil tenha problemas de abastecimento de energia a partir do segundo semestre. Com a permanência de condições hidrológicas desfavoráveis, mesmo analistas que assumiam antes uma postura mais cautelosa em relação ao tema já começam a enxergar dificuldades no suprimento de energia nos horários de pico, o que poderia resultar em blecautes. A avaliação é que, dependendo da situação futura dos reservatórios, pode não haver geração suficiente para atender os momentos de forte demanda do sistema elétrico.

A preocupação é crescente, embora não haja consenso entre os especialistas sobre qual cenário é o mais provável. O risco de racionamento rigoroso, como o de 2001, é visto como remoto pela maior parte dos analistas. O alerta de emergência hídrica emitido pelo governo federal na semana passada acendeu um sinal vermelho para a produção das usinas hidrelétricas, que representam mais de 60% da matriz elétrica nacional. Com a geração hidrelétrica prejudicada, é possível que o suprimento de energia fique comprometido “na ponta”, isto é, no pico da demanda.

“Nesse período de uma ou duas horas, que temos que usar a potência das hidrelétricas, é possível que não tenhamos essa reserva”, afirma Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da UFRJ. Com isso, vem o risco de “blecautes”: cortes seletivos do fornecimento de energia.

“Nesse período de uma ou duas horas, que temos que usar a potência das hidrelétricas, é possível que não tenhamos essa reserva”, afirma Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da UFRJ. Com isso, vem o risco de “blecautes”: cortes seletivos do fornecimento de energia.

Edvaldo Santana, doutor em Engenharia e ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), avalia que há um sério risco de blecaute no sistema elétrico caso o governo não inicie, agora, um programa para racionar consumo de energia. Ele entende que o país poderia repetir a situação vivida em 2009, quando uma pane deixou cerca de 90 milhões de brasileiros e 90% do Paraguai sem fornecimento de energia por algumas horas.

Só estamos enxergando a situação do lado da oferta”, alertou. Em sua leitura, se a oferta de energia não reage “do jeito que o governo quer”, a solução para contornar a crise seria olhar a demanda. Santana defende ações que possam conduzir a uma economia de 8 gigawatts (GW) médios até outubro para prevenir o risco de possíveis blecautes semelhantes aos de 2009.

Apesar da preocupação, os especialistas ressaltam que o problema enfrentado hoje é muito diferente do vivido há 20 anos. Naquela época, o setor elétrico brasileiro era mais vulnerável: a matriz era bem menos diversificada, sem participação relevante das fontes eólica e solar, o país não contava com um parque termelétrico robusto e o sistema de transmissão para escoamento da energia entre as regiões era deficiente.

Hoje, o Brasil tem folga estrutural para geração de energia, com capacidade instalada suficiente para atender a demanda, que pouco cresceu nos últimos anos. A questão agora é que, com a produção das hidrelétrica prejudicada, pode faltar potência para picos de demanda.

“Muitas pessoas estão vendendo o caos. E eu acho que não é o momento de vender o caos”, afirma o presidente da consultoria PSR e ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Luiz Barroso. Para ele, caso o ritmo de chuvas seja melhor do que o previsto, e se forem bem-sucedidas as ações já anunciadas pelo governo para elevar oferta de energia no segundo semestre, não será necessária uma medida de restrição de consumo.

Porém, há quem enxergue a possibilidade concreta de racionamento de energia. “Acho muito difícil não ter racionamento. A situação está muito complicada. Os reservatórios estão muito baixos”, afirma o pesquisador da UFRJ e ex-engenheiro de Furnas Renato Queiroz. Para ele, o setor elétrico pode se tornar um “gargalo” para um aquecimento mais intenso da atividade econômica esperado para o segundo semestre.

Além de os reservatórios das hidrelétricas estarem comprometidos pela falta de chuvas, o cenário de abastecimento de energia é agravado, ainda, por dificuldades no suprimento de gás para geração termelétrica e pelos embates nos usos múltiplos da água.

Um alerta soou quando a Petrobras anunciou, para o mês de agosto, uma parada programada de manutenção da plataforma de Mexilhão e do gasoduto Rota 1, que escoa o gás natural produzido ali e de outras plataformas do pré-sal e pós-sal da Bacia de Santos. A medida trouxe certa inquietação, embora tenha sido combinada com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e envolva medidas compensatórias para reduzir riscos.

Segundo o Ministério de Minas e Energia (MME), os esforços para evitar uma crise de energia estão concentrados na gestão das restrições de operação das hidrelétricas. A orientação é poupar o máximo possível da água dos reservatórios, o que exigirá coordenação junto à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que decide sobre o uso da água em diversos fins, como navegação e irrigação.

O objetivo é garantir que, mesmo com poucas chuvas, seja mantido um volume de água suficiente tanto para geração de energia elétrica quanto para os demais usos da água. Sem um controle adequado das vazões, podem ocorrer impactos a todos os usuários”, disse a pasta, em nota à imprensa.

Jerson Kelman, ex-diretor-geral da Aneel, ressalta que a ANA assumiu a plena responsabilidade de alocar o uso dos rios da forma que mais atenda aos interesses nacionais. “O CMSE [Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico] se manifestou no sentido de que de nada adianta acionar as térmicas para economizar água nos reservatórios caso permaneçam, sem qualquer flexibilização, as restrições ambientais que obrigam os reservatórios a soltar água para jusante [em direção à foz].”

Na visão de alguns especialistas, uma alternativa para evitar problemas de atendimento nos horários de pico seria gerenciar o consumo de grandes consumidores de energia, os “eletrointensivos”, num esforço conjunto para desafogar o sistema nos momentos de maior demanda. Uma opção seria um programa organizado de “resposta da demanda”: a indústria remanejaria sua produção para horários alternativos, como a madrugada, e em troca receberia uma compensação financeira.

A Aneel já lançou algumas iniciativas para incentivar a resposta da demanda no país e até realizou, em 2018, um projeto piloto do gênero para indústrias do Nordeste. Não houve grande adesão. Desde então, o regulador estuda como aperfeiçoar o programa e garantir sua atratividade aos consumidores.

“Como a resposta da demanda é um mecanismo que necessita da adesão de consumidores e, além disso, da disponibilidade quando do despacho pelo ONS, temos que avaliar com muito cuidado seu potencial sobre cenários de restrições no suprimento e atendimento da carga”, afirmou ao Valor Efrain da Cruz, diretor da Aneel e o relator do processo.