Folha de S. P.

Por Cecília Machado
15/10/2019

Só após gastos obrigatórios pagos é que pensamos nas crianças pobres do Bolsa Família

Não há dúvidas sobre a importância do investimento público nas crianças, garantindo que elas possam exercer seus potenciais produtivos quando crescem. Além de fomentar o desenvolvimento da própria criança, esses investimentos são positivos também para a sociedade.

Ao se tornarem adultos inseridos na economia, desoneram gastos do governo em saúde, assistência social e segurança pública, permitindo o direcionamento de recursos para outros setores, como saneamento, infraestrutura e tecnologia, num grande círculo virtuoso que potencializa ainda mais os investimentos iniciais feitos nas crianças.

Se pudéssemos escolher onde alocar o gasto público, investimentos em educação, em especial para as crianças em situação de pobreza, deveriam ser as prioridades. Nesse sentido, o pacto constitucional de 1988 estabeleceu importantes princípios mínimos e irredutíveis da ordem social, como a garantia à educação e à assistência.

Mas, ainda que a nossa Constituição já estabeleça um olhar especial às crianças pobres, é inevitável constatar que o atual texto não é suficiente para garantir os direitos delas.

Prova evidente da negligência que temos com as crianças pobres do país é a recente proposta de emenda constitucional (PEC) 133, a PEC paralela da reforma da Previdência, entendida por muitos como a constitucionalização do programa Bolsa Família.

E por que constitucionalizar a assistência às crianças pobres? Porque elas são, no momento, beneficiárias residuais dos gastos do governo.

Por óbvio, se tudo está constitucionalizado, acaba sobrando pouco para o que não está. Apenas depois que todos os gastos obrigatórios terminam de ser pagos —como os altos salários do funcionalismo público, incluindo o Judiciário e o Ministério Público, e as crescentes obrigações previdenciárias—, aí sim pensamos nas crianças pobres do Bolsa Família.

Bonito no papel, o artigo 195-A da PEC, apesar de garantir o reajuste real do benefício, continua deixando as crianças pobres à margem da rede de proteção social.

Os idosos pobres, por exemplo, possuem a garantia constitucional de um salário mínimo. As crianças não. E como ampliar gastos em educação, saúde e saneamento, importantes insumos no desenvolvimento das crianças, quando o Orçamento está sufocado?

A verdadeira seguridade social da criança é aquela que libera, e não engessa, recursos públicos para que os investimentos possam ser feitos em educação, saúde e assistência, capitalizando todos os ganhos de escala que a provisão pública pode proporcionar.

Nesta reforma da Previdência tivemos importantes oportunidades de liberação de recursos, como a inclusão dos estados e municípios na reforma, a equiparação da aposentadoria dos professores à das demais categorias, a definição de critério de renda objetivo para a concessão do BPC e a igualdade nas idades de aposentadoria entre homens e mulheres. Optou-se por não mexer nessas questões e remediar a enorme injustiça que se fez com as crianças incluindo o reajuste do Bolsa na Constituição. Nada mais justo, mas dois erros não fazem um acerto.

Caminhamos para a constitucionalização de tudo, ainda que a melhor forma de assistir aos vulneráveis seja por meio da política pública de forma universal, pensada e executada pelo Estado.

Melhor mesmo seria deixar de fora da Constituição parâmetros específicos das remunerações do setor público, seguridades e assistências, tudo aquilo que engessa o Orçamento público e é passível de batalha judicial.

Na atual reforma da Previdência, gritaram e espernearam os professores, as mulheres, os militares, os estados e os municípios, os funcionários públicos, os idosos, todos a favor de seus interesses. Foram atendidos. As crianças, coitadas, se comportaram bem demais.