Por Fernando Torres – Valor Econômico

25/07/2019 – 05:00

Há uma série de eventos que vem ocorrendo no Brasil nos últimos meses e anos – tanto na governança de estatais como na política fiscal – que tem sido supreendentemente relevados por agentes de mercado e investidores, mas que causariam furor se tivessem se passado sob o antigo governo.

Sem querer entrar no Fla-Flu político, a ideia do texto é analisar o peso da famosa “confiança” em compromissos de longo prazo, em detrimento de fatos práticos de curto prazo e até mesmo de regras. Esse fenômeno, aliás, não se restringe ao Brasil.

Começando pela governança de estatais, há poucos dias a Petrobras divulgou um comunicado ao mercado mencionando a renúncia de seu diretor de compliance, cargo que foi criado após operação Lava-Jato e que reporta diretamente ao conselho de administração, sem que ninguém tenha feito nenhum questionamento. Dias depois, noticiou-se que a companhia estudava abandonar o selo de boas práticas de governança a partir de critérios recém-criados pela B3, em conjunto com outros agentes de mercado. As ações da empresa na bolsa? Nenhum movimento relevante.

Em relação à política de preços de derivados, depois da tentativa frustrada de se adotar no país a paridade com as cotações internacionais com reajustes diários, voltamos a ter hoje uma política opaca, em que a estatal mexe discricionariamente nos preços praticados, sem nenhum prazo ou patamar definidos para as mudanças. Em essência, não é diferente do que se fez no Brasil até 2010, antes de o petróleo disparar para mais de US$ 100 o barril entre 2011 e 2014. Mas ninguém no mercado deu bola. Aparentemente porque confiam no presidente Roberto Castello Branco (e no chefe dele, Paulo Guedes).

Em relação ao plano de venda de ativos, se está claro que o fim do monopólio no refino beneficia a sociedade, não vi o conselho da companhia explicar as vantagens diretas para a companhia e seus acionistas.

Mudando de estatal, vamos para Sabesp. Também neste mês, a agência “Bloomberg” publicou uma entrevista com João

Doria, governador do Estado que controla a companhia, falando (novamente) sobre o plano de privatização da empresa, e citando valores que pretende arrecadar. Aliás, desde o início do ano tanto Doria quanto seu secretário Henrique Meirelles têm falado com frequência sobre o tema de desestatização da empresa de saneamento. Ora para trazer o assunto, ora para esfriar a ideia. A empresa, só no fim de abril, divulgou um único fato relevante para dizer que existe um grupo de trabalho analisando “alternativas de reorganização societária”.

Enquanto isso, os negócios com as ações viram um prato cheio para investidores “mais bem-informados” que os outros. E os defensores da boa governança? Nem uma palavra. Um palpite: por serem favoráveis à privatização, acabam relevando a falta de equidade na divulgação de informações.

Aliás, o tema de desestatização tem tanto apelo que poucos se lembram da exclusão temporária do direito de venda conjunta (tag along) durante a alienação de controle das empresas na década de 1990. Por ora, estamos livres dessa ameaça.

Agora indo para a política fiscal. Há alguns anos, quando as pedaladas foram finalmente vetadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), e o então ministro Nelson Barbosa disse que o Brasil teria uma meta de déficit primário para aquele ano, a proposta parecia um palavrão. Se faltava dinheiro, diziam os críticos, caberia ao governo reduzir gastos e aumentar impostos já naquele mesmo ano, para assegurar o superávit primário imediatamente.

Desde então, os déficits fiscais se repetem sucessivamente sem (quase) nenhuma cobrança para um ajuste fiscal mais forte de curto prazo. Afinal, tanto o teto de gastos como a reforma da Previdência atacam o problema, mas tem efeito de longo prazo e com impacto inferior ao tamanho do rombo.

Também há alguns anos, um índice de dívida bruta/PIB de 70% era considerado um precipício. Se o indicador ultrapasse a marca de 69,99%, o Brasil acabaria no dia seguinte. Agora, vemos as projeções apontarem para 80%, 90%, e nem por isso o risco-país medido pelo CDS está nas alturas. Pelo contrário, o índice caiu para as mínimas históricas.

Ainda na política fiscal, a regra de ouro, que impede que o governo se endivide para pagar despesas correntes, antes era temida. Agora, foi formalmente adaptada para 2019 e já se fala em sua extinção sem que ninguém fique corado. Mas as taxas de juros de longo prazo nem por isso subiram. Mais uma vez o movimento é o oposto, testam as mínimas históricas.

Nesse ponto faço a comparação internacional. Países desenvolvidos estão entre os mais endividados e com dívidas crescentes desde 2008. Mas a simples crença de que vão honrar seus compromissos é suficiente para que eles consigam tomar dinheiro no mercado pagando juros baixos e até negativos. A esses países também é permitido o uso de estímulos fiscais e “parafiscais” para impulsionar a economia.

O Brasil ainda não chegou lá – não pode recorrer a esse tipo de política sob aplausos. Mas mesmo economistas ortodoxos já

consideram ser possível recorrer a algum impulso fiscal para tirar a economia da letargia.

E o que se tira desses exemplos? Que quando não confiam em você (no país, no ministro, ou no acionista controlador), você precisa parecer bom moço. Já quem conquista a confiança não precisa ser tão comportado assim, porque os agentes têm a expectativa de que você vai se endireitar… assim que possível. Um fruto bastante positivo dessa mudança de patamar de confiança começa a ser colhido na política monetária, com o Brasil podendo experimentar taxas reais de juros baixas sem que a projeção de inflação de longo prazo dê um salto. Até mesmo as metas menores de inflação são logo incorporadas nas previsões do Boletim Focus.

Mas será que “tudo bem” abrir mão de boas práticas de governança corporativa porque o executivo que está no cargo é prómercado? Será que é recomendável adiar o equilíbrio do orçamento e deixar a dívida subir porque o ministro é confiável e no futuro o ajuste virá em algum momento?

Um risco latente é que a confiança em pessoas é algo mais frágil do que confiança em instituições. Os investidores acreditam que os EUA vão honrar sua dívida independentemente de quem seja o governante da vez. O mesmo ocorre com o Japão ou o Reino Unido, para citar outros países bastante endividados.

Embora almeje entrar para a OCDE, o Brasil ainda não subiu para a Série A dos países. Ao menor sinal de perda da confiança no longo prazo (ou diante de qualquer abalo no poder de seus atuais fiadores), a realidade imediata que se encontrará não será tão bonita. E ficará ainda mais feia no instante seguinte.

Fernando Torres é editor do Valor Investe