Estadão
02/04/2020

Por Ismar Viana e Thaisse Craveiro*

Poucos dias após o isolamento social em decorrência do coronavírus (covid-19), começaram a ser veiculadas propostas simplistas de mitigação dos danos sociais e econômicos, entre as quais, a redução da remuneração dos agentes públicos.

Impossível olvidar que as investidas contra o funcionalismo não começaram com as discussões econômicas relacionadas à covid-19, tenta-se, contudo, que estas funcionem como catalisadoras para emplacar reformas administrativas de forma açodada. Enquanto lideranças brasileiras cogitam reduzir vencimentos de agentes públicos, que totalizam algo em torno de 11 milhões[i] em todo Brasil, prejudicando a capacidade de compra dessas famílias, o cenário mundial caminha em direção diametralmente oposta para enfrentar os efeitos da crise econômica decorrente da pandemia, tendo o secretário-geral da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), Angel Gurria, defendido que a situação para ser superada exige “a ambição do Plano Marshall” e “a visão do New Deal” – ambos miram na melhoria dos níveis de consumo como um dos pilares –, e reforçado que tudo deve ser feito para restaurar a confiança dos cidadãos.

Nessa linha, convém registrar que o Índice de Confiança do Consumidor (ICC) do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE) caiu 7,6 pontos de fevereiro para março[ii], atingindo 80,2 pontos, o menor desde janeiro de 2017, quando marcou 78,3 pontos, e, segundo pesquisadores da FGV, embora dois terços da coleta de dados tenha ocorrido antes das medidas de restrição, houve impacto expressivo da pandemia. Também houve queda de 9,3 pontos no Índice de Expectativas, que mede as avaliações sobre o futuro, atingindo 83,9 pontos, o menor desde dezembro de 2016 (81,6 pontos).

A instabilidade decorrente da pandemia já abala a confiança e a expectativa dos agentes econômicos, impactando relações de produção e consumo, e, agravando o cenário de incertezas e reduzindo a confiança na economia, surgem contraproducentes proposições legislativas que minam um dos poucos grupos que poderiam manter algum nível de perenidade em suas decisões de consumo, lastreado na previsibilidade de suas remunerações, vez que as relações contratuais de trabalho advêm de leis alicerçadas no texto constitucional, cuja flexibilização e redução do poder de compra, nesses termos, possuem custo econômico cujos impactos precisam ser considerados, seja sob o viés da insegurança jurídica, inclusive na vertente da proteção da confiança dos cidadãos nas instituições, seja quanto à repercussão em cascata no consumo de bens e serviços, que sustentam empregos e empresas.

Registre-se que, mesmo antes de consumadas e ainda que sequer cheguem a ser implementadas, referidas proposições e matérias jornalísticas relacionadas, por si, já provocaram abalos à confiança e reações naturais e racionais voltadas à indisposição para o consumo de quem se vê diante de iminente risco de comprometimento da sua capacidade alimentar e daqueles que deles dependem, dando azo a uma retração econômica[iii], o que, em última análise, prestar-se-á ao agravamento do sufoco econômico que a medida deseja evitar.

Tais propostas simplistas, que se traduzem confiscatórias, na prática, revelam carga de sentimentalidade e conhecimento pouco profundo acerca do serviço público e dos agentes incumbidos da sua regular prestação, advindas da ideia equivocada e pouco racional de que a contraprestação pecuniária dos agentes públicos é bônus que não guarda relação com o grau de complexidade e responsabilidade das atividades públicas por eles prestadas, algumas das quais sem paradigma na iniciativa privada – o que esvazia comparações –, como se a variação remuneratória para menor, em percentual arbitrado, pudesse ocorrer sem qualquer critério, ao arrepio do próprio art. 39, §1° da CF/88, dentre outros basilares preceitos constitucionais, recorrentemente invocados, inclusive, para refutar medidas que possam ofender o princípio da dignidade da pessoa humana.

Não é de hoje que se busca eleger a classe dos agentes públicos como destinatários de ações sacrificatórias em momentos de crise, desprezando as legítimas saídas contidas no ordenamento jurídico pátrio para a superação de situações de anormalidade e imprevisibilidade. E quais seriam essas medidas ofertadas pelo ordenamento jurídico pátrio?

Dentre muitas possibilidades, além de previsões expressas na Constituição Federal de instituição de empréstimos compulsórios (art. 148) e imposto sobre grandes fortunas (art. 153, VII), já suscitadas e cujos debates devem ser enfrentados oportunamente, rememore-se o disposto na Lei Maior em matéria de cargos públicos e despesa com pessoal, já que é nisso em que se centra a discussão.

Antes mesmo de invocar a primeira medida constitucionalmente definida para recondução de gasto de pessoal ao limite, prevista no inciso I do §3º do art. 169 da CRFB/88, faz-se imprescindível, em ordem de prioridade, uma visitação ao art. 37, incisos I, II e V, com o objetivo de efetivar um saneamento de ocupações de cargos públicos que estiverem em descompasso com tais ditames constitucionais, chamando à responsabilidade, inclusive por omissão, aqueles que, por dever constitucional ou legal, tendo ciência das irregularidades, deixaram de agir, sem prejuízo, é claro, do imperioso dever de reconhecimento da nulidade dos atos.

Assim, previamente à redução da despesa com cargos em comissão regularmente criados, torna-se obrigatória a comprovação de que a totalidade deles tenha sido criada por meio de leis específicas, que tais leis contemplam o rol de atribuições do cargo, que essas atribuições não são rotineiras ou burocráticas, e que efetivamente se destinam às atividades de direção, chefia e assessoramento.

Além disso, os brasileiros precisam ter acesso a estudos de dimensionamento de pessoal capazes de justificar o quantitativo de cargos em comissão dos órgãos e poderes, dado que o provimento de cargos dessa natureza deve ser exceção. Isso servirá, inclusive, para evitar que sejam usados como moeda de troca, não apenas em processos eleitorais, mas como meio de satisfação de interesses ilegítimos de autoridades nomeantes, mediante o famigerado nepotismo cruzado, ou, ainda, da intitulada “rachadinha”, prática configuradora do crime de peculato.

Somente após superado o filtro de regularidade da criação e ocupação desses cargos e evidenciado o quantitativo realmente necessário à satisfação do interesse público, e não à satisfação das respectivas autoridades nomeantes, o que iniludivelmente permitirá razoável realocação de recursos e escorreito funcionamento, é que se deve invocar o art. 169, §3º da CRFB/88, como medida saneadora.

Mas não é só. A situação de anormalidade exige compromisso institucional do Poder Judiciário no sentido de julgar as ações diretas de inconstitucionalidade que versem sobre criações e transformações de cargos públicos ao arrepio do texto constitucional, aquelas que promoveram, na prática, ascensões funcionais entre cargos distintos e continuam produzindo verdadeiro e injustificado incremento remuneratório, sem qualquer relação lógica-funcional com as atividades desempenhadas pelos agentes beneficiários, mormente porque não há que se invocar direito adquirido de atos concretizados a partir de leis inconstitucionais.

Nesse sentido, não se está defendendo a flexibilização de normas fiscais, ao contrário, elas mesmas possuem ressalvas expressas para situações de calamidade pública, a exemplo do art. 65 da LRF. O que se busca, aqui, é aprofundar o debate com esteio no ordenamento jurídico de base constitucional para perquirir soluções que não desprezem a segurança jurídica e a já combalida confiança na economia e nas relações com o poder público, inclusive de seus agentes, eis que a crise econômica que se avizinha dificilmente se resolverá com austeridade, com a apropriação da contraprestação pecuniária de agentes públicos, medida de reduzida eficácia.

Por outro lado, hoje, após 30 anos de Constituição, mais do que nunca a realidade posta impõe efetividade institucional, a ser concretizada por meio da nulidade de provimentos de cargos públicos em descompasso com os ditames constitucionais, atentatórios à moralidade administrativa, lesivos ao patrimônio material e reputacional da Administração Pública brasileira, sem prejuízo da necessária responsabilização nas esferas cível, administrativa, inclusive por omissão, daqueles que têm o dever legal de fazer cessar nefastas práticas, o que, sem dúvida, constituir-se-á ação eficaz na minoração de deletérios efeitos econômicos decorrentes da pandemia da covid-19.

*Ismar Viana, mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Autor do livro Fundamentos do Processo de Controle Externo; Thaisse Craveiro, mestre em Planejamento e Políticas Públicas. Auditora de Controle Externo