H2O.ECO
13/07/2020

Por Vitor Bertini*

Bologna, uma fortaleza nos caminhos do saneamento

No magistral livro Ardil 22, de Joseph Heller, 1961, o personagem principal, John Yossarian, 28 anos, é um capitão do 256º Esquadrão da Força Aérea Americana servindo como bombardeador em um B-25, baseado na pequena ilha de Pianosa, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial.

Em uma das loucuras da guerra, fio condutor do livro, Yossarian, o personagem principal, vivia a angústia da espera de um ataque à Bologna, sempre adiado pela chuva, e de um destino terrível: ataques à cidade italiana, tomada de artilharia antiaérea alemã, equivaliam a um atestado de óbito. A única esperança era que nunca mais parasse de chover.

Na madrugada do primeiro dia sem chuva, véspera do ataque, em silêncio, Yossarian visita a barraca de informações, avança a linha vermelha dos aliados por sobre Bologna no mapa de situação e sai acordando todos: “tomamos Bologna! Tomamos Bologna!” A missão foi suspensa.

No dia 25 de junho de 2020, semana passada, comemoramos a aprovação pelo Senado da República do PL 4.162 – o novo Marco Regulatório do Saneamento Brasileiro. Nos capítulos, parágrafos e incisos da nova lei, o anseio de dignidade da sociedade brasileira através da universalização do acesso à água tratada e destino adequado do esgoto sanitário. Procedimentos legais, metas, regulações, comissão interministerial, datas, licitações, regionalizações, regulamentações no porvir, está tudo, ou quase tudo, lá. Tão ou mais importantes, e também dignas de comemorações, são as manchetes, manifestações e juras de amor à causa que seguiram à votação. Agora vai!

Entretanto, assim como justas e devidas são as celebrações, prudentes devem ser algumas lembranças e serena a condução das decisões: esta legislação, contando a partir da Constituição Federal de 1988 é o 9ª norma legal a incidir sobre o setor de saneamento brasileiro em um período de 32 anos; algumas determinações legais constantes no novo regramento, como as responsabilidades da ANA (Agência Nacional de Águas) são de implementação trabalhosa e com resultados alcançáveis em não menos do que três anos, tempo da instalação de uma nova legislatura e mandato presidencial; os atuais arranjos institucionais e negociais já impulsionam o setor com parcerias público-privadas significativas e promissoras e não podem correr o risco de descontinuidade por qualquer razão; e as Companhias Estaduais, colocadas quase como vilãs neste enredo, são hoje os agentes responsáveis por algo como 70% do fornecimento de água, todos os dias, para todo o Brasil, e deverão estar, necessariamente, na mesa das soluções.

Setor de princípios técnicos aparentemente simples, o saneamento estrutura-se em arranjos institucionais e de negócios complexos. Primo-irmão dos tradicionais setores de infraestrutra, transporte e telecomunicações, diferencia-se destes pela proximidade com a saúde, pelo trato comunitário e pela multiplicidade de realidades locais e suas consequências de engenharia e modelagem de negócios: fornecer água para palafitas no Amazonas não é o mesmo negócio ou mesma solução técnica que enfrentar a escassez de mananciais em Bagé, no Rio Grande do Sul ou, ainda, levar água e soluções de esgoto para municípios localizados no semiárido nordestino.

Além das prudentes lembranças e das características já mencionadas, cabe ressaltar que o poder concedente é o município – e suas peculiaridades. Mais, os serviços podem ser exercidos diretamente por autarquias ou departamentos municipais, concedidos para companhias estaduais (de capital aberto ou não), concedidos para empresas privadas, para consórcios regionais ou, ainda, executados por diferentes tipos de contratos entre estas personalidades jurídicas; a regulação pode ser municipal, regional, estadual e, agora, federal; os contratos podem ser de concessão de água, de esgoto ou de ambos, “de programa”, ou, nossa realidade, simplesmente não existir.

Causa de discurso fácil e execução difícil, de importância social e econômica sempre lembrada mas pouco exercitada em orçamentos, o saneamento brasileiro – com escopo e atribuições cada vez mais amplos, vide o acréscimo da responsabilidade do trato dos resíduos sólidos – ainda não é uma verdadeira prioridade nacional e, se buscamos um estágio ainda mais avançado de soluções, não consegue andar só: há que se fazer acompanhar por políticas de ocupação do solo e habitação, para ficar nas duas mais notáveis.

Entretanto, ditos os cuidados, voltemos às comemorações! Demos um belo passo e, altaneiros, podemos anunciar para as próximas gerações: alvíssaras, meus descendentes! Saneamento à vista!

Agora, cuidadoso esforço de todos nós, cabe fazer com que a tênue linha vermelha dos aliados, o PL 4.162, de 2020, não seja apenas mais um ardil a postergar ou atrapalhar a batalha, mas, isto sim, consiga ser o verdadeiro instrumento legal para a tomada de Bologna – a universalização do saneamento no Brasil.

*Vitor Bertini, engenheiro pela UFRGS, é consultor privado, ex-presidente da AESBE de 2004-06 (Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento), ex-presidente da Companhia Riograndense de Saneamento de 2003-06 (CORSAN) e publisher da h2o.eco