Valor Econômico
30/06/2020

Por João Capobianco e Guilherme Checco

Desafio maior é fixar tarifa justa para o cidadão que ao mesmo tempo remunere o prestador

O Senado Federal acaba de aprovar o chamado Novo Marco Legal do Saneamento. Agora temos mais uma que se junta a dezenas de outras leis estabelecidas nas últimas décadas com o propósito de resolver a nossa maior vergonha social: condenar a maioria da população brasileira a conviver com um sistema de saneamento medieval.

Alguns oponentes à nova lei, afirmam que ela privatiza a água. Ledo engano. A água já está privatizada no Brasil há muito tempo. Não no sentido literal de “colocar sob o controle de empresa particular a gestão de um bem público”, como nos ensina Houaiss, mas pelo fato concreto e inquestionável de que atualmente só quem pode pagar tem acesso pleno e regular 

a esse recurso vital. Em São Paulo, considerado o Estado mais desenvolvido do país, por exemplo, estão fora do alcance da tarifa social de abastecimento nada menos do que 1,7 milhão de famílias em situação de pobreza. Imaginem a realidade em outras regiões menos favorecidas.

A receita do prestador continua dependente do volume de água vendida, o que não induz ao uso econômico e consciente

Mesmo no sentido clássico da palavra, o que foi aprovado no Congresso Nacional não pode ser chamado de privatização. A água no Brasil continua sendo um bem de domínio público e sua utilização permanece condicionada à outorga, concedida por ente governamental, com os mesmos procedimentos legais exigidos atualmente. Tampouco foi alterada a previsão constitucional de que o saneamento é de titularidade do município, que permanece com autonomia para organizar a prestação desse serviço.

O que a nova lei muda é a introdução da obrigatoriedade de realização de licitação para os novos contratos de prestação dos serviços de água e esgoto, com a inclusão de metas para se atingir a universalização do saneamento até 2033. Essa data não é novidade, pois estava prevista desde 2013 no Plano Nacional de Saneamento Básico, mas nunca foi respeitada. A partir de agora, ela deixará de ser “simbólica” pois a validade dos novos contratos estará vinculada ao alcance de metas, de forma obrigatória e peremptória. Existe, inclusive, a previsão de caducidade dos mesmos, caso as metas e a melhoria progressiva não sejam alcançadas.

Outro ponto a destacar é que nas futuras licitações as empresas estaduais poderão concorrer em igualdade de condições com as privadas e as prefeituras poderão renovar os contratos de programa atualmente em vigor por 30 anos, a partir de 2022, desde que incorporem as metas de universalização. Ou seja, quem quiser, observadas as obrigações previstas da nova lei, poderá manter o contrato com a empresa estadual até 2052. Espera-se que essa novidade possa por fim a uma herança terrível do antigo Plano Nacional de Saneamento, da década de 1970, que permitiu que as empresas estaduais pudessem operar em municípios sem a necessidade de concorrência ou compromissos com metas.

O fato do acesso aos serviços de água e esgoto serem dois direitos humanos fundamentais, com relação direta com a dignidade humana, a saúde e o bem-estar, não significa que o poder público deva ser o prestador do serviço. O papel do Estado, esse sim fundamental e indelegável, é garantir que ele seja prestado com qualidade e justiça social.

Sendo um monopólio natural, pois não é possível oferecer ao cidadão a opção de escolher entre mais de um prestador do serviço na região em que se encontra, esse mercado necessita ser regulado sob os princípios do interesse público, a fim de que haja qualidade e seja definida uma tarifa ao mesmo tempo justa para o cidadão e capaz de remunerar adequadamente o prestador.

Aí estão os maiores desafios da nova lei. Não parece simples resolver o enorme problema da falta de infraestrutura de distribuição de água e de coleta e tratamento de esgoto em um país de dimensões continentais, em que a maioria dos municípios tem baixíssima concentração demográfica, somente com recursos privados. O mesmo pode-se dizer do problema de 58,6%

dos municípios, segundo dado mais recente do IBGE, não terem plano de saneamento, pré-condição fundamental para a elaboração das licitações.

Dada a dimensão do problema, não parece razoável que tudo será resolvido com a constituição dos blocos regionais, onde a conta será dividida entre municípios maiores e menores por meio dos chamados “subsídios cruzados”. O risco de muitos pequenos municípios permanecerem de fora, em um modelo em que apenas a tarifa responderá pela viabilização dos custos de investimento e operação e remuneração dos investidores, é muito grande.

A delegação da competência de estabelecer diretrizes regulatórias em escala nacional à Agência Nacional de Águas (ANA), que agora passa a carregar em seu nome o “S”, de saneamento, é um avanço no sentido de aumentar a previsibilidade do mercado, gerar um padrão nacional, compartilhar boas práticas, com impactos positivos na segurança jurídica desse setor que exige aportes em altos volumes e de longo prazo. No entanto, serão necessários investimentos consideráveis na ANA e nas agências reguladoras que operam na ponta, observando as realidades locais, e que terão de desempenhar um papel fundamental na regulação em um mercado que, como já dissemos, é um monopólio natural.

Do ponto de vista da sustentabilidade e da segurança hídrica, problemas estruturais não foram tratados pela nova lei. A receita do prestador continuará a depender do volume de água vendida, o que não induz ao uso econômico e consciente. Permanece a completa desvinculação entre a captação de água e a proteção dos mananciais que a fornecem, o que compromete as fontes naturais obrigando a busca de água em locais cada vez mais distantes, com impactos ambientais indesejáveis e custos mais altos.

Nenhuma menção foi feita em relação às vulnerabilidades impostas aos sistemas hídricos, decorrentes do agravamento das mudanças climáticas ou sobre as soluções baseadas na natureza como instrumento de gestão sustentável da água, como preconiza o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 e como a Unesco apresentou durante o Fórum Mundial da Água que aconteceu no Brasil em 2018.

Definitivamente, com uma necessidade de investimentos para a universalização estimados entre R$ 500 a R$ 700 bilhões, a aprovação do novo marco legal do saneamento não deve ser considerado uma panaceia, assim como a maior abertura à participação das empresas não autoriza o governo a se descomprometer com a necessidade de investir recursos no sistema.

O desafio do saneamento em um país tão desigual ainda será muito árduo. Na lei anterior, a bela palavra “universalização” aparecia nove vezes ao longo do texto. Agora, na nova, aparece onze. Avançamos duas casas.

João Paulo R. Capobianco e Guilherme Checco são, respectivamente, vice-presidente e coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)