Valor Econômico
04/03/2020

Por Por Luiz Eugênio Müller Filho e Fernando Dodorico

As consequências jurídicas do vírus geram efeito dominó em diferentes jurisdições e regimes jurídicos

A China é a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. É a nação com maior crescimento econômico nos últimos 25 anos. É também um dos países que mais exporta e importa mercadorias no planeta. É o principal parceiro comercial do Brasil e insumos chineses fazem parte de nossa cadeia produtiva.

Diante de dados tão expressivos, é natural que sejam colossais os impactos do surto do coronavírus sobre as relações de comércio internacional e mesmo nacional. Por uma razão lógica, se – como diz Ray Dalio – a economia é fruto de um conjunto de transações executadas milhões e milhões de vezes, repetidamente, os impactos do vírus sobre a economia global também são imensos.

As consequências jurídicas do vírus geram efeito dominó em diferentes jurisdições e regimes jurídicos

 Transações geralmente são instrumentalizadas por contratos. Esses contratos, por sua vez, estipulam obrigações a serem cumpridas pelas partes em determinadas formas, prazos e observadas certas condições.

A junção dessa dinâmica contratual, tratada aqui em abstrato, com um problema global e concreto como o coronavírus, facilmente remete ao descumprimento desses contratos. O inadimplemento dos contratos, por sua vez, remete à penalidade decorrente de não ter sido cumprido o que foi combinado.

Sendo a China, repita-se, grande nação exportadora e importadora, o inadimplemento dos contratos impactados pelo coronavírus possui como origem dois fatores preponderantes: (i) improdutividade e (ii) impossibilidade de circulação de bens e serviços.

Como se sabe, entre as principais medidas de contenção do vírus estão o bloqueio/isolamento de cidades e a restrição de viagens. Isso possui impacto direto na capacidade produtiva de inúmeras empresas chinesas (e transnacionais e mesmo nacionais), prejudicando a cadeia produtiva de vários países. Há ainda outro lado da moeda. Aquelas empresas que produziram aquilo que se comprometeram a entregar sofrem com a dificuldade/impossibilidade de escoamento.

Para tentar minimizar os estragos, o governo chinês, conhecido pelo seu intervencionismo (não se pretende aqui discutir o mérito das intervenções), vem prestando suporte tecnológico, financeiro e legal para as empresas impactadas.

No que diz respeito especificamente a esse suporte legal, merece realce a emissão de Certificados de Força Maior. Não se pretende também traçar um comparativo do instituto da força maior em diferentes legislações e sistemas jurídicos. Mesmo assim, fato é que o instituto, em linhas bem gerais, é elemento excludente de responsabilidade.

Excluindo-se a responsabilidade, exonera-se o contratante que causou o dano do dever de reparar previsto em lei e/ou contrato. Cai por terra a penalidade.

E não é de hoje que situações excepcionais e de proporções globais fazem emergir o debate sobre o instituto da força maior. No passado, por conta do surto de Sars, a “Suprema Corte” da China emitiu uma “interpretação judicial” por meio da qual instruiu os tribunais “inferiores” a “entenderem” o surto de Sars como um acontecimento de força maior e com base nisso decidirem os litígios ali instaurados.

Algo semelhante aconteceu nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro. Na ocasião, reivindicações de aplicação da teoria da força maior foram acolhidas, isentando-se obrigações contratualmente estabelecidas (e penalidades decorrentes do inadimplemento) durante os dias em que ficaram suspensos os voos em espaço aéreo americano.

Diante disso, fica aqui uma indagação: será que atos de governo, tais como os Certificados de Força Maior, podem/devem influir e definir de quem é a razão num eventual conflito entre particulares, no qual se discuta a incidência (ou não) de penalidades em virtude de uma situação passível de ser caracterizada como de força maior? Não seria a adequação do fato ao conceito de força maior atividade restrita exclusivamente aquele que julgará uma possível disputa, que exigirá a revisão das particularidades de cada caso, inclusive dos efeitos deletérios sofridos pela parte inocente – vis-à-vis sua contraparte chinesa, por exemplo – em face de seus próprios contratantes?

Realmente, não há como negar que o fato de um governo emitir Certificados de Força Maior deixa claro que não só o vírus é um problema de proporções globais. As consequências jurídicas dele também são, gerando um efeito dominó em diferentes jurisdições e regimes jurídicos.

Num cenário como este, deve-se ter atenção redobrada para elementos contratuais como cláusulas: (i) de eleição de foro e/ou escolha de jurisdição (estatal ou arbitral); (ii) que fixam critérios de interpretação; (iii) que estabelecem (se o caso) qual a legislação aplicável, o idioma, a sede da disputa, se é possível o julgamento por equidade; (iv) que definem o significado dos termos do contrato etc.

O problema é que – eis, aqui, mais um deles – não raras vezes esses elementos contratuais não recebem a devida atenção no momento da elaboração do texto. Despontam no surgimento, em concreto, de uma situação que poderia ter sido regulada de forma mais satisfatória e técnica pelas próprias partes.

Luiz Eugênio A. Müller Filho e Fernando Dodorico são advogados em São Paulo, no Müller Daibes e Chebatt – Advogados, e atuam nas áreas de contencioso estratégico, recuperações judiciais e falências.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.