Valor Econômico
06/04/2021

Por João Paulo R. Capobianco e Guilherme B. Checco

Revisões tarifárias são oportunidades para implantar práticas sustentáveis de gestão hídrica

A aprovação do novo marco legal do saneamento trouxe novas perspectivas para o enfrentamento de uma das maiores vergonhas nacionais: ter mais de 39 milhões de cidadãos sem acesso à água potável e cerca de metade da população sem coleta de esgoto. Os prejuízos à saúde e qualidade de vida provocados por essa trágica situação em pleno século XXI são amplamente conhecidos e extrapolam em muito os excluídos dos serviços de saneamento básico.

O Atlas do Esgoto da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), publicado em 2017, indica que há 110 mil km de rios totalmente poluídos distribuídos por todo o país, impactando praticamente a totalidade dos brasileiros. Nesse contexto, enfrentar o desafio de ampliar a infraestrutura a fim de universalizar o saneamento por meio da criação de condições favoráveis à maior participação do setor privado foi um passo muito importante.

Investir na proteção de fontes naturais e áreas de recarga de aquíferos gera retorno e diminui custos com tratamento.

No entanto, é preciso registrar que, mesmo que o bilionário aporte de recursos e capacidades esperados se viabilizem nos prazos necessários, é certo que priorizar o aumento da oferta e distribuição de água de qualidade e recolher o esgoto para ser tratado antes de voltar aos corpos hídricos são ações fundamentais, mas não suficientes. Garantir a perenidade das fontes naturais de água precisa ser igualmente tratada como prioridade.

A água é um recurso natural finito essencial à vida e à dignidade humana, além de ser insumo básico para as atividades econômicas. Não por acaso desde 2010 a Organização das Nações Unidas reconhece o acesso a ela como um direito humano. Entretanto, o pouco cuidado com esse bem fundamental tem nos levado a avançar aceleradamente para um modelo insustentável.

À falta de cuidado com a qualidade e a preservação das nossas águas somam-se alguns complicadores. O crescimento populacional e o consequente aumento da demanda é um deles, especialmente nos grandes centros urbanos, onde há uma maior concentração humana. Um segundo complicador, que ainda não foi incorporado ao planejamento do setor do saneamento, são as mudanças no clima que vêm gerando impactos significativos nos ciclos hidrológicos, com aumentos na repetição de eventos climáticos extremos, como secas prolongadas e chuvas torrenciais, acarretando novos desafios para a já complexa gestão hídrica.

Diante desse cenário altamente desafiador é necessário construir soluções a partir das oportunidades de aliar o cuidado com a água, o bem-estar social e resultados econômicos positivos. O caminho é a segurança hídrica.

Na prática, segurança hídrica é a gestão sustentável dos recursos hídricos de forma a assegurar o atendimento das necessidades da população, dos ecossistemas e das atividades econômicas atuais, sem comprometer as das gerações futuras. Requer uma somatória de esforços de diferentes setores econômicos e variadas políticas públicas em prol da construção de um novo paradigma de cuidado com a água. Implica trabalhar de forma integrada a gestão da oferta e da demanda, investir na redução das perdas e do desperdício e na ampliação de práticas de reúso e captação de água de chuva, inovar nos sistemas e de coleta e tratamento de água e esgoto e atuar na proteção das áreas de mananciais.

Em todas essas frentes, o setor de saneamento básico tem papel central, inclusive no que diz respeito à proteção dos mananciais, visto que é o segundo maior usuário de água doce no país (23,8%, segundo a ANA), perdendo apenas para a irrigação agrícola. Desta forma, investir na conservação e recuperação de mananciais é, por definição, uma medida economicamente racional, especialmente porque a água é a matéria-prima essencial do negócio. Investimentos na proteção das fontes naturais e das áreas de recarga dos aquíferos geram retorno econômico, pois diminuem os custos com tratamento e os investimentos em obras de engenharia para captar água em locais cada vez mais distantes.

O caso do abastecimento de Nova York, quinta maior área metropolitana do planeta, é dos mais conhecidos e bem documentados exemplos das vantagens econômicas, sociais e ambientais da opção pela proteção dos mananciais implementada pelo setor de saneamento.

A própria empresa prestadora do serviço liderou um processo de envolvimento dos agricultores para proteger sua área de captação distante cerca de 200 km da área urbana. No lugar de gastar cerca de US$ 6 bilhões na construção de uma nova estação de tratamento capaz de filtrar as águas cada vez mais poluídas, investiu US$ 500 milhões em um programa estruturante voltado à infraestrutura verde, envolvendo compra de terras e apoiando técnica e financeiramente os agricultores, que passaram a ser os guardiões daquele local. Os benefícios extrapolaram o setor de saneamento e geraram impactos positivos também para o setor agrícola.

O Brasil possui uma grande oportunidade para avançar nesse campo. O novo marco do saneamento conferiu à ANA a competência de estabelecer diretrizes nacionais para a regulação. Como são as diretrizes e regras regulatórias que geram os incentivos adequados para as empresas, públicas ou privadas, buscarem aprimoramentos, as possibilidades para iniciarmos um ciclo virtuoso capaz de mudar o atual padrão insustentável estão ao nosso alcance.

Uma iniciativa promissora e que merece acompanhamento é o processo atualmente em curso de revisão tarifária da Sabesp, maior empresa de saneamento da América Latina. A Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), responsável pela definição da nova tarifa, avançou de forma inovadora e incluiu entre as diretrizes a estruturação de um programa de conservação de mananciais. O detalhamento desta inovação ainda aguarda um parecer da Procuradoria Geral do Estado que, espera-se, seja favorável.

Há um longo caminho para a sociedade e atores interessados percorrerem na busca da concretização de avanços nesse campo. Esse processo será muito agilizado se a ANA incorporar o entendimento de que as revisões tarifárias das concessionárias são uma ótima oportunidade para acelerarmos a universalização do saneamento e a implementação de práticas sustentáveis na gestão dos recursos hídricos.