Estadão
09/09/2020

Por Yuri Schmitke Almeida Belchior Tisi e Flávio Matos*

Nos últimos anos tem-se utilizado amplamente o termo economia circular, alternativa à economia linear tradicional baseada na produção-utilização-disposição, que visa minimizar o uso de novos recursos através da reutilização e valorização dos produtos e materiais em fim de vida, e evitar assim a criação de resíduos, poluição e emissão de gases de efeito estufa.

As Usinas de Recuperação Energética (URE) contribuem com a economia circular ao lidar com resíduos não recicláveis que de outra forma seriam depositados em aterros ao com resíduos não recicláveis que, de outra forma, seriam depositados em aterros, ao recuperar materiais importantes como metais e minerais. A título de exemplo, a Europa produziu, em 2018, cerca de 220 milhões de toneladas de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), dos quais 116 milhões de toneladas (ou 53%) eram não-recicláveis e seriam destinadas a UREs ou aterros sanitários, sendo que os últimos encontram-se na escala mais baixa da hierarquia de gestão de resíduos.

Além disso, é expressivo o potencial de redução de gases de efeito estufa no setor de gestão de RSU através do desvio de aterros. Segundo a Agência Ambiental Europeia (EEA), com o aumento dos índices de tratamento e, concomitante queda de 60% na destinação de RSU aos aterros da região, entre 1995 e 2017, verificou-se uma redução de 42% nas emissões de gases de efeito estufa a partir de RSU neste mesmo período.

Com mais de 2.430 plantas em todo o mundo [Ecoprog, 2018], o Brasil ainda não possui nenhuma URE, revelando que nosso País ainda se encontra muito aquém do desejável em matéria de gestão de RSU, destinando 96% para aterros e lixões, sendo que a grande maioria dos aterros não seria licenciado com os padrões internacionais. No entanto, diversas ações têm sido envidadas para que isso se torne realidade. O novo marco do saneamento traz a obrigatoriedade de licitação por meio de PPPs e permite a cobrança de tarifa na conta de consumo, como a conta de água, por exemplo. O Ministério de Minas e Energia anunciou recentemente que irá realizar leilão regulado para contratação de energia elétrica proveniente de URE.

Com tais instrumentos torna-se possível obter garantia take or pay para o financiamento das usinas URE, garantindo aos agentes financeiros contrato de longo prazo de fornecimento de lixo, com garantia de pagamento por meio de tarifa, assim como contrato de longo prazo para a venda da energia elétrica gerada, principais fontes de receitas de uma URE que permitem a amortização dos investimentos em capital intensivo.

Dentre os diversos benefícios que as URE trazem para a sociedade, podemos traçar uma comparação entre os benefícios inerentes às UREs em comparação com os aterros sanitários no Brasil.

Gestão Sustentável de Resíduos

As UREs tratam com segurança o lixo doméstico em apenas uma hora, recuperando sua energia e usando equipamentos avançados de controle de poluição do ar. Nos aterros sanitários os resíduos degradam-se por centenas de anos, dependendo de sua composição (>500 anos para sacolas plásticas), sem controlar suas emissões, apresentando um risco ambiental de longo prazo a ser deixado para as gerações futuras.

A geração de energia a partir de RSU em UREs permitiria gerar até 600 kWh de eletricidade por tonelada de RSU, suficiente para abastecer um domicílio de tamanho e et c dade po to e ada de SU, su c e te pa a abastece u do c o de ta a o médio durante 108 dias. O potencial de geração de energia a partir do biogás de aterro é de somente cerca de 65 kWh por tonelada de RSU, suficiente para um domicílio de tamanho médio durante 12 dias, quase 10 vezes inferior às UREs.

O 5º Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) aponta que as UREs reduzem em 8 vezes as emissões de gases de efeito estufa quando comparadas com os aterros, e são a forma mais eficaz para mitigação dos gases de efeito estufa dos RSU. Para cada tonelada de resíduo tratado em uma URE, deixa-se de emitir cerca de 1.600 kg de CO2 equivalente em relação a aterros sem captura de metano. A implantação de UREs, somente nas 28 regiões metropolitanas brasileiras com mais de 1 milhão de habitantes, teria potencial de evitar a emissão de cerca de 58 milhões de toneladas de CO2 equivalente anuais, ou 1.74 bilhão de CO2 equivalente durante a vida útil da URE de 30 anos, o que corresponderia a plantar mais de 7 bilhões de árvores neste período. Aterros sanitários são uma importante fonte de metano, um poderoso gás de efeito estufa que, de acordo com o IPCC, tem um potencial de aquecimento do planeta 86 vezes superior ao CO2 num horizonte de 20 anos (GWP20), ou de 34 vezes num horizonte de 100 anos (GWP100).

As UREs estão sujeitas à mais rigorosa legislação ambiental e são equipadas com sistemas de tratamento de gases de combustão altamente eficientes, com valores típicos de emissões entre 50% e 75% abaixo dos valores-limite impostos pela diretiva Europeia 2010/75/EU. Esta diretiva requer monitoramento dos limites de emissões de mais de 20 componentes, ao passo que em plantas de combustão, com capacidade térmica superior a 50 MW, apenas 3 componentes poluentes são monitorados. A resolução SMA 79/2009 adotada pelo Estado de São Paulo utilizou esta diretiva como referência. Os aterros estão sujeitos a regulamentos mínimos de emissão de ar, apesar da emissão de mais de 170 poluentes e 46 toxinas do ar, incluindo 4 cancerígenos conhecidos e 13 prováveis.

Os locais onde UREs foram implementadas apresentam também as taxas de reciclagem mais elevadas no mundo. No Brasil, as UREs permitiriam a recuperação de em média 23 kg de metais reciclados para cada tonelada de resíduo tratado. A implantação de UREs nas 28 regiões metropolitanas Brasileiras, com mais de 1 milhão de habitantes, teriam potencial de recuperar mais de 800.000 toneladas de metais por ano, e que continuariam enterrados e perdidos, ao passo que aterros não permitem a recuperação de metais.

As UREs fornecem uma solução local para o gerenciamento sustentável de resíduos, que geralmente são transportados a apenas alguns quilômetros de distância antes de serem convertidos em energia limpa e renovável, permitindo uma economia em transporte de RSU e de uso do sistema de transmissão de energia equivalente a cerca de 340 R$/MWh.

Por outro lado, quando os resíduos são depositados em aterros, muitas vezes são transportados por caminhão por centenas de quilômetros antes de serem enterrados, contribuindo para a emissão de gases de efeito estufa por combustíveis fósseis.

Custos do atendimento à saúde pública

Os 13 países com taxa de tratamento térmico de RSU superior a 25% do total gerado estão também entre os 16 primeiros países no Índice de Saúde e Bem-Estar do Fórum Econômico Mundial. A instalação de UREs permitem incomensuráveis benefícios à saúde da população. Segundo estudos da Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA), o custo do atendimento médico à população afetada pela má gestão dos RSU é calculado entre 10 e 20 U$/ton de RSU, equivalente a uma média de 75 R$/ton. Somente nas 28 regiões metropolitanas do Brasil, com mais de 1 milhão de habitantes, seria possível economizar cerca de R$ 2,7 bilhões por ano, ou R$ 82 bilhões em 30 anos.

Geração de empregos

Em estudo realizado pela Comissão Europeia, indicou-se que a recuperação energética de 10 mil toneladas de resíduos pode criar até 40 postos de trabalho. Durante a fase de construção de uma URE, requerem-se em média de 200 a 300 trabalhadores diretos no pico da obra, que dura cerca de 36 meses. Em fase operacional, uma planta de tamanho médio pode gerar cerca de 80 a 100 empregos diretos permanentes durante 30 anos, sem considerar os indiretos. Por outro lado, para cada 10 mil toneladas de resíduos enviados a aterros, estima-se a criação de somente cerca de 10 postos de trabalho.

Ainda que a destinação a aterros novos não seja uma solução ambientalmente sustentável, é imperativo reduzir o impacto ambiental dos aterros existentes através da captura de gás para posterior conversão em energia elétrica através de moto geradores. Ponderando também que, no Brasil, ainda se destina cerca de 37% dos RSU a lixões a céu aberto, é inevitável que inúmeros municípios tenham ainda que considerar aterros sanitários como próxima etapa na evolução da hierarquia de gestão de RSU, devido à falta de escala ou de restrições econômicas para viabilizar soluções ambientalmente adequadas, evitando-se os males ainda maiores causado pelos lixões.

Recomenda-se, portanto, que todos os municípios, ou consórcios municipais, estruturem Parcerias Público Privadas (PPPs) para a construção de UREs, seja por meio de fundações, universidades ou bancos (BNDES, Caixa), com vistas a desviar ao máximo os RSU dos aterros e assim trazer benefícios sociais, econômicos e ambientais para as presentes e futuras gerações.

*Yuri Schmitke Almeida Belchior Tisi, presidente da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren) e presidente do WtERT-Brasil, membro do Energy Recovery Working Group da ISWA

 *Flávio Matos gestor Internacional de Resíduos pela ISWA consultor em Flávio Matos, gestor Internacional de Resíduos pela ISWA, consultor em Gestão de Resíduos, conselheiro da Abren e coordenador do WtERT-Bra.