Marcelo Valença e Raquel Laudanna* – Estadão

16 de agosto de 2019 | 04h00

Com a liberação dos recursos do FGTS e a posterior limitação sob o argumento de que saques relevantes nas contas do FGTS poderiam comprometer os recursos para financiamento à construção civil, exuma-se mais uma vez o defunto do SFH.

O propósito deste artigo é apresentar um resumido histórico sobre a vinculação dos fundos para concessão de financiamento habitacional com os recursos do FGTS. Começou assim em 1964 de forma regular e eficiente e foi assim até a o começo da década de 1970. Ai, a partir de 1986, o FGTS foi a fonte substancial da concessão de financiamento habitacional, porém em um volume muito menor do que o país demandava. A partir da década de 2000 foram criados mecanismos que possibilitam ao mercado financeiro, em geral, conceder recursos ilimitados para o financiamento habitacional com segurança, eficiência e vantajosa do ponto de vista fiscal.

Em 1964 foi criado o Sistema Financeiro da Habitação – SFH que era gerido pelo Banco Nacional da Habitação – BNH, que, à sua época, foi o maior programa habitacional do mundo. O SFH funcionava da seguinte forma: recursos do FGTS e da captação das poupanças eram geridos pelo BNH, que usava os bancos que captavam em poupança para desembolsar financiamentos para produção de unidades imobiliárias às incorporadoras e aos compradores finais de tais unidades.

Com os recursos da amortização dos financiamentos, o SFH remunerava as contas de FGTS e os bancos que captavam em poupança remuneravam as aplicações das cadernetas de poupança. Mas não era só isso, o sistema ia além. Os créditos dos financiamentos concedidos às incorporadoras e compradores finais ainda não amortizados poderiam ser securitizados mediante a emissão de letras hipotecárias para o mercado financeiro em geral. Com a emissão das letras, o SFH conseguia “refrescar” a originação para novos financiamentos para produção para incorporadores e para compradores finais, e com isso os recursos do FGTS também poderiam ser utilizados para obras de saneamento básico e infraestrutura, por exemplo.

O SFH funcionava muito bem até a crise do petróleo na década de 1970 que desequilibrou substancialmente as contas públicas e consequentemente começou a escalada inflacionária. O SFH teve que aprender na marra a distinção entre juros e correção monetária. Assim, as amortizações dos financiamentos às incorporadores e aos compradores finais foram severamente prejudicadas por medidas governamentais de “congelamento” de parcelas de amortização dos financiamentos. Acrescente-se, ainda, o aumento na inadimplência em função da crise econômica em si. Com isso, a remuneração das contas do FGTS e das cadernetas de poupança ficou comprometida, e, ainda, o então “refresco” das Letras Hipotecárias perdeu credibilidade total no mercado financeiro.

Em 1986, o BNH faliu e o “rescaldo” do SFH passou para a gestão da Caixa Econômica Federal (CEF), deixando o rombo do Fundo de Compensação de Variação Salarial (FCVS) nas contas públicas: R$ 76 bilhões à época. Tal dívida foi assumida pelos bancos comerciais que captavam em poupança. Pela assunção do FCVS, a captação de poupança que deveria ser destinada para financiamentos habitacionais poderia ser utilizada como funding para outras operações comerciais dos bancos. Era o famoso Mapa 4. Para ter ideia da lucratividade da operação, os bancos utilizavam os depósitos em caderneta de poupança remunerados como tal, e destinavam os recursos para crédito rotativo, por exemplo. O arbitramento de taxas a favor dos bancos era absurdo.

De 1986 até 1997, o SFH operou de maneira muito reduzida e não supria a necessidade de financiamento habitacional do país. Como a captação de poupança estava sendo consumida pelo Mapa 4, a única fonte era o FGTS. Durante este período, começaram a surgir as estruturas de “auto financiamento”, que consistiam em uma grande pedalada, por meio da qual as incorporadoras alongaram o tempo das obras e parcelavam diretamente aos compradores finais a aquisição dos apartamentos em 100 parcelas mensais e sucessivas, sendo que a cada 6 meses havia uma parcela maior para ser paga. Ainda que se construísse um prédio em 48 meses, por exemplo, as contas das obras venciam durante este período. Só que o funding para essas parcelas estava programado para ser captado em 100 meses. Solução: lança-se um novo empreendimento e, com os recursos da entrada, paga-se o anterior.

Isso deveria ter acabado em 1997 com a falência da Encol e a criação de um novo sistema financeiro para a habitação: o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). O SFI foi concebido para não ter o dinheiro carimbado do FGTS e da poupança como lastro. Com o SFI, vieram as Cédulas de Crédito Imobiliário (CCI), Certificados de Recebível Imobiliário (CRI), Letras de Crédito Imobiliária (LCI), as Cédulas de Crédito Bancário imobiliárias (CCB-I), as Letras Bancárias e os Fundos de Investimento Imobiliário (FII). Todos esses títulos e valores mobiliários servem para financiar as incorporadoras e compradores finais na construção e compra de imóveis com recursos do mercado financeiro em geral e não mais a poupança e o FGTS, como ocorria (e ocorre ainda hoje) no SFH.

Esses títulos contam com três níveis de segurança para o investidor do mercado financeiro em geral: patrimônio de afetação ao nível do empreendedor imobiliário, regime fiduciário na emissão do título, e blindagem na Lei de Falências no caso de situações de iliquidez do gerador do crédito. Fora que, até a vindoura Reforma Fiscal, todos esses títulos garantem aos investidores sensíveis incentivos fiscais podendo chegar à alíquota zero no rendimento.

E tem mais! Em 2009, foi criado o Programa Minha Casa, Minha Vida com dotação direta do Tesouro Nacional para financiamento de unidades habitacionais para a população de baixa renda. O operador deste programa é a CEF. Os recursos do FGTS podem ser utilizados para funding do Minha Casa, Minha Vida. Porém, nada impede que a CEF utilize quaisquer dos títulos do SFI para gerar funding para os financiamentos do Programa Minha Casa, Minha Vida.

Diante disso, está na hora de parar de criar limites como desculpas para não se liberar as contas de FGTS aos seus titulares, como agora se pretende, sob o motivo de que ficarão comprometidos os financiamentos habitacionais.

O passado próximo nos mostra que o FGTS é uma fonte limitada de recursos para o atendimento ao financiamento habitacional. O futuro está no SFI pois, afinal, a demanda é muito grande.

Que fique claro que o propósito deste artigo não é criticar o SFH. Pelo contrário. Reconhecemos sua relevância para o desenvolvimento do financiamento habitacional e desenvolvimento do mercado de desenvolvimento imobiliário do país. Mas chegou a hora de deixá-lo em paz na História.

*Marcelo Valença, advogado, sócio responsável pela área de Operações Imobiliárias do escritório ASBZ Advogados; Raquel Laudanna, advogada da área de Direito Imobiliário do escritório ASBZ Advogados