Estadão
21/10/2020

Pouco mais de 50 anos atrás, no dia 13 de outubro de 1969, em meio à ditadura militar, o Decreto-Lei Nº 949 era assinado, lançando oficialmente o Plano Nacional de Saneamento Básico, o Planasa. Seu objetivo era implementar um sistema de financiamento e execução dos projetos de saneamento básico, baseados em um modelo de indução. Para receber os recursos captados pelo FGTS, depositados no Fundo de Água e Esgoto e geridos pelo Banco Nacional de Habitação, cada estado deveria criar sua própria Companhia Estadual de Saneamento Básico (CESB). Estas empresas foram criadas como sociedades de economia mista, em tese autossustentáveis, que financiariam sua operação a partir da receita gerada, e passariam a ser responsáveis pelo serviço mediante a celebração de contratos de concessão municipais, com duração de 30 a 40 anos.

Apesar da adesão de quase 75% dos municípios brasileiros e do relativo sucesso em termos de aumento da cobertura, havendo a proporção de domicílios urbanos com acesso à rede de água dobrado entre 1970 e 1990, o Plano não conseguiu atingir as localidades mais necessitadas, nem apresentar avanços similares no esgotamento sanitário. Além disso, os desequilíbrios do sistema de financiamento levariam ao encerramento do Planasa, em 1992.

Atravessando as disputas entre municipalistas e estadualistas pela titularidade do serviço, o fim da ditadura militar e a promulgação da Constituição de 1988, os avanços no saneamento básico seguiram ainda marcados pela forte limitação nos serviços de esgotamento sanitário, e pelas desigualdades no acesso em função do porte populacional dos municípios, ou das barreiras de expansão das redes rumo às periferias metropolitanas.

Foi apenas em 2007 que um novo marco jurídico, a Lei 11.445, passou a demarcar o funcionamento do setor, trazendo a possibilidade de que diferentes atores participassem de diferentes etapas da política de saneamento, como o financiamento, o planejamento, a operação e a regulação. Todavia, a lei não alterou a lógica das estruturas de poder que garantiam a hegemonia das Companhias Estaduais de Saneamento Básico no suprimento dos serviços públicos correspondentes.

Ainda hoje, quase 30 anos após o fim do Planasa, cerca de 70% dos serviços estão sob o controle das CESBs, e estamos distantes dos índices de cobertura e qualidade desejados para o saneamento básico. Temos um déficit próximo de 50% no esgotamento sanitário e de 20% no tratamento e distribuição de água, com mais de 100 milhões de brasileiros sem acesso a serviços de esgotamento adequados e cerca de 35 milhões sem acesso à rede de água potável. Tais dados, apesar dos avanços na Lei 11.445, refletem o legado de um longo período de investimentos insuficientes e da desarticulação entre a política de saneamento básico e o processo de urbanização acelerada, com efeitos críticos nas periferias metropolitanas. Mais que isso, reflete as sucessivas incapacidades de se lidar com a complexidade e as diversidades regionais de um país como o Brasil.

É nesse cenário que a regionalização dos serviços públicos de saneamento básico emerge como relevante alternativa para avançarmos rumo à universalização. A prestação regionalizada e a gestão associada dos serviços de saneamento, inclusive com a participação de consórcios públicos, já estava explicitamente inserida na Lei 11.445 desde 2007, em seus artigos 3º, 8º e todo o capítulo 3 do referido texto legal. Este caminho se reforça no recém-aprovado novo marco legal (Lei 14.026/2020), pela inclusão da prestação regionalizada como um dos princípios fundamentais da execução dos serviços de saneamento básico, “com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços”.

A prestação regionalizada passa a ser detalhada e redefinida conforme três diferentes modalidades de estruturação, baseadas na existência de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião instituída pelos estados mediante lei complementar, ou na formação de unidades regionais de saneamento básico, também a serem instituídas pelos estados mediante lei ordinária, e por fim os chamados blocos de referência, enquanto agrupamentos de municípios não necessariamente limítrofes, que voluntariamente optem pela gestão associada dos serviços de saneamento básico. As três modalidades, e especialmente a terceira, poderão estar relacionadas ao instrumento dos consórcios públicos intermunicipais.

Também o artigo 8º da Lei 11.445 é alterado com a inclusão explícita de um dispositivo que prevê que “o exercício da titularidade dos serviços de saneamento poderá ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal”, sendo admitida a “formalização de consórcios intermunicipais de saneamento básico, exclusivamente composto de municípios, que poderão prestar o serviço aos seus consorciados diretamente, pela instituição de autarquia intermunicipal”, mas vedando a contratação de sociedades de economia mista ou empresas públicas sem prévia licitação. Todavia, o artigo 17º da Lei 11.445 preserva a incongruência de prever como facultativa a elaboração de um plano regional de saneamento básico na prestação regionalizada, passando ainda a declarar a possibilidade de que os planos regionais abordem componentes específicos do saneamento básico, e de que prevaleçam sempre sobre os planos municipais nos territórios de prestação regionalizada.

Consórcios públicos intermunicipais são organizações de municípios que se unem para resolver determinados problemas compartilhados, ou para atuação unitária e integrada em diferentes campos da política pública, sendo regulamentados a partir de 2007. Nesse sentido, os consórcios emergem também como instrumentos para a regionalização das políticas públicas a partir do interesse comum de um dado agrupamento de municípios. Seja no aumento das capacidades de gestão, ganhos de escala, otimização do quadro de funcionários ou articulação política e cooperativa junto à esfera estadual ou federal, os consórcios intermunicipais assumem um relevante papel no desenho e na implementação das políticas públicas em caráter regional, apoiando, sobretudo, os pequenos e médios municípios.

Não temos um cadastro consistente de consórcios intermunicipais atuantes no país, mas a Confederação Nacional de Municípios registra e sistematiza a existência desses organismos, computando 491 consórcios espalhados por mais de 20 estados, número certamente subdimensionado. Um expressivo contingente pouco superior a quatro mil municípios participa de algum tipo de consórcio, sendo que 1.275 se articulam no tema da gestão dos resíduos sólidos, 713 no abastecimento de água e 463 no esgotamento sanitário.

Dentre as diferentes configurações desses consórcios intermunicipais, é também possível diferenciá-los quanto ao escopo de atuação, existindo aqueles que desempenham funções no planejamento, na operação – própria ou delegada – e na regulação. Recebem destaque algumas experiências emblemáticas, como as catarinenses ARIS (Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento), AGIR (Agência Intermunicipal de Regulação do Médio Vale do Itajaí) e o CIMVI (Consórcio Intermunicipal do Médio Vale do Itajaí), assim como a paulista ARES PCJ (Agência Reguladora dos Serviços de Saneamento das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí).

No contexto do novo marco legal do saneamento básico, o consorciamento intermunicipal ganha potencial importância, como vimos pelas alterações registradas. Isso pode vir a fortalecer a prestação direta por autarquias intermunicipais, ou seu papel central na estruturação de contratos, concessões e parcerias estabelecidas regionalmente pelos blocos de municípios que podem ser formados, e especialmente pelos consórcios já existentes. A regionalização dos serviços de saneamento básico passa a ter destaque, portanto, como um importante pilar desse novo marco regulatório (Lei 14.026/2020).

De fato, também no possível caminho da maior participação da iniciativa privada no investimento e no provimento dos serviços de saneamento básico, a figura dos consórcios intermunicipais é potencialmente relevante. A formação e atuação dos consórcios pode representar ganhos de escala pelo agrupamento de municípios de menor porte, ou pela interlocução política, técnica e jurídica com um organismo que represente todas as prefeituras de um dado território integrado. Por outro lado, experiências bem sucedidas mostram que a participação em consórcios amplia a própria capacidade de gestão dos municípios, propiciando um adequado monitoramento e regulação dos serviços, bem como a construção de uma relação com o setor privado que passa a ser mediada por um órgão que não representa diretamente um único governo municipal, e portanto estruturando uma governança compartilhada e comprometida com a geração de efetivo valor público.

Concluímos, portanto, com o argumento de que se amplifica o caminho promissor da prestação regionalizada de serviços, orientada para a universalização e a melhora na qualidade do saneamento básico em municípios consorciados. Esse caminho se conecta também com o conceito do desenvolvimento regional sustentável, com o cumprimento de metas da Agenda ODS em âmbito regional, com o fortalecimento dos governos locais e do controle social articulado regionalmente. Destacamos o papel dos consórcios públicos intermunicipais como relevantes ferramentas para o planejamento, a implementação e o monitoramento da prestação de serviços de forma regionalizada. Liderando e coordenando a transformação do território, os consórcios intermunicipais poderão se consolidar como protagonistas do necessário e urgente avanço no saneamento básico em todo o país, contribuindo efetivamente para a construção de um Brasil desenvolvido e próspero, mais justo e menos desigual.

Marcelo Sönksen Milko, é aluno do 8.º semestre do curso de Administração Pública da FGV EAESP e estagiário da consultoria em gestão Falconi.

Luis Paulo Bresciani, é professor do departamento de gestão pública da FGV e do programa de pós-graduação em administração da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.