Valor Econômico
09/10/2020

Por tudo o que o país passou, a responsabilidade fiscal não deveria ser objeto de dúvida

As privatizações despontam como a bola da vez nas discussões da política econômica. Se o presidente Jair Bolsonaro não quer ouvir falar em reformulação dos gastos públicos e se a reforma tributária mergulhou de novo em seu eterno labirinto, falemos em vender empresas do governo.

Junto com os imóveis da União, as estatais formam um patrimônio de R$ 2 trilhões, segundo aponta levantamento conduzido pelo ex-secretário de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Salim Mattar.

Lobbies bloqueiam 3D há 30 anos, com ou sem eleição

A criação de um fundo com recursos das vendas de parte desses ativos está em discussão no Ministério da Economia. Segundo se ventilou, poderia ser utilizado para bancar investimentos e para programas sociais.

Mas, como o problema do Renda Cidadã e dos investimentos é falta de espaço sob o teto de gastos, e não exatamente mais dinheiro, é mais provável que esse fundo seja usado para outras coisas.

Por exemplo, abater a dívida. O endividamento elevado e sem o lastro de uma política fiscal crível é a causa da instabilidade dos mercados, afirmou esta semana o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Tem puxado para cima os juros e o dólar.

Outro possível uso, em discussão inicial no Ministério da Economia, seria destinar o fundo para destravar concessões em saneamento, disse uma fonte. Poderia dar aval a prefeituras nos casos em que a opção seja uma Parceria Público-Privada (PPP), e não uma concessão clássica. As experiências passadas em PPP na área de saneamento não são boas, exatamente por causa da inadimplência das prefeituras.

Trata-se de uma alternativa pouco viável, na avaliação do professor de modelos regulatórios da Fundação Getulio Vargas Maurício Portugal Filho, sócio do escritório Portugal Ribeiro Advogados. Não por ser ilegal, mas porque a entrada da União num projeto municipal é difícil, dado o grau de ingerência que o governo federal precisaria ter e a incompatibilidade disso com os planos dos prefeitos.

O fundo poderá ser usado também para dar uma espécie de poupança aos trabalhadores da Carteira Verde Amarela, ainda a ser criada. Para cada real obtido com trabalho, eles ganhariam um crédito do governo, para usar em momento de necessidade. Dar dinheiro como uma espécie de prêmio pelo trabalho sairia mais barato do que dar um benefício assistencial, costuma dizer o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Diferentemente do que parece, há meios para se avançar com as privatizações. Em março passado, sem alarde, o governo transformou em regulamento uma espécie de “plano B” para o “fast track” das privatizações idealizado pelo ex-secretário Salim Mattar.

É um mecanismo que permite a inscrição em massa de empresas estatais no Programa Nacional de Desestatização (PND), a partir do qual já contariam com autorização legal para serem privatizadas.

O Decreto 10.263 diz que, a cada quatro anos, será feita uma análise da sustentabilidade econômico-financeira de todas as empresas estatais com controle direto da União, “além de verificar se permanecem as razões de imperativo à segurança nacional ou de relevante interesse público que justificaram sua criação”. No caso das estatais dependentes do Tesouro, a avaliação será bianua.

Verificado que não há razão para manter a estatal, essa pode ser incluída no PND. Há um entendimento pelo qual as empresas que estão no programa já têm autorização legal para serem privatizadas.

As avaliações serão feitas em junho de 2021.

As exceções são: Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, Caixa e Banco do Nordeste. No caso dos Correios, há uma dúvida sobre o que é a universalização de serviços postais prevista na Constituição. Um projeto de lei, ainda em elaboração, tentará esclarecer esse ponto.

O decreto é útil para vencer resistências dentro do próprio governo às privatizações, explica a economista Elena Landau, ex-diretora de Privatizações do BNDES. Não é raro ver os ministros lutando para manter suas empresas.

No entanto, ela é cética em relação ao andamento do programa. “A questão principal é que o Bolsonaro não quer privatizar nada”, afirmou

Não por acaso, Mattar deixou o governo cinco meses após a publicação do decreto, dizendo que o establishment, “a política”, não tem interesse em privatizar.

Vender ou não empresas do governo é uma discussão que apenas tangencia o problema principal: o impasse a que chegou a política fiscal, por obra do presidente.

Bolsonaro colocou um freio no 3D (desvinculação, desindexação, desobrigação), ao reafirmar que não tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos. Ao mesmo tempo, tem dado espaço para que o Ministério da Economia seja pressionado para dar mais recursos aos investimentos. E, num contexto de aproximação com o Centrão, tem deixado correr conversas sobre o desmonte da superpasta de Guedes.

É difícil acreditar que, passadas as eleições municipais, o 3D avançará. Os pobres são o grupo menos poderoso que precisará ser contrariado no projeto. Corporações profissionais e empresariais têm bloqueado esse debate há pelo menos 30 anos e não há sinais que mudarão de postura. Enfrentá-los no Congresso Nacional sempre foi projeto do ministro da Economia. Mas, como se vê, não do presidente.

Por tudo o que o país passou, a responsabilidade fiscal não deveria ser objeto de dúvida. A esta altura, já deveria ser um item resolvido e fora da agenda, para que as energias fossem direcionadas à reconstrução do tecido econômico no pós-pandemia.

Aproxima-se o dia em que o auxílio emergencial vai acabar, as empresas vão retomar a plena carga e as mudanças na estrutura produtiva vão mostrar sua verdadeira face. Há uma onda de desemprego à frente que, sem solução, dificilmente poupará os planos eleitorais de quem não decidiu quando tinha de decidir.

Lu Aiko Otta é repórter em Brasília. Hoje, excepcionalmente, deixamos de publicar a coluna de Claudia Safatle

E-mail: lu.aiko@valor.com.br