Valor Econômico
12/06/2020

Porque beneficiar um ou outro setor, em detrimento das contas públicas no geral?

A pandemia do coronavírus tem resultado em significativo aumento dos litígios tributários voltados ao não recolhimento ou postergação do pagamento de tributos, à luz da reduzida capacidade econômica das pessoas jurídicas. Exemplo recente desse cenário foi noticiado neste Valor: distribuidoras de energia elétrica obtiveram liminares que autorizaram o recolhimento do ICMS sob o regime de caixa. Ou seja, afastou-se a sistemática de substituição tributária conferindo às empresas o direito de pagarem o ICMS apenas à luz da quitação, pelo consumidor final, da fatura respectiva.

A demanda tem relação direta com a Resolução Normativa nº 878/2020, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que proíbe, até o dia 23, a suspensão do fornecimento de energia elétrica em razão de inadimplemento. A medida tem cunho social e visa assegurar direitos básicos aos cidadãos que tenham sofrido impacto econômico em razão da pandemia. Nesse sentido, aliás, caminharam diversos outros países: Portugal adotou medidas para impedir quebra nos abastecimentos de água, luz ou gás por falta de pagamento, e a França, logo no início da quarentena, decretou a suspensão da cobrança das contas de luz, água e gás no país, benefício que atingiu pessoas físicas e jurídicas.

No Brasil, de outro lado, recentemente foi aprovado o Decreto nº 10.350/2020 que estabeleceu regras de tomada de crédito pelas distribuidoras de energia elétrica. O objetivo geral é auxiliar o setor, que vem sofrendo com a queda no consumo e aumento na inadimplência. Conforme noticiou este Valor, “o empréstimo será constituído pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com um sindicato de bancos”. O pagamento de parte da conta se dará, porém, pelos consumidores, a partir de 2021: haverá o repasse dos custos respectivos na fatura de energia elétrica, pela cobrança de uma tarifa adicional que perdurará por 60 meses.

As medidas liminares mencionadas no início deste texto apresentam-se como mais uma providência de auxílio ao setor elétrico: em razão das decisões judiciais, as distribuidoras

poderão recolher o ICMS apenas sobre as faturas efetivamente pagas. A lógica das decisões é, contudo, econômica.

O fato jurídico capaz de gerar a incidência do ICMS não é o pagamento, pelo consumidor, da mercadoria adquirida e sim a circulação do bem. O pagamento, ou não, pelo denominado “contribuinte de fato” é elemento econômico, que em nada altera a relação jurídica tributária constituída por ocasião da ocorrência do fato gerador.

Nesse sentido, inclusive, é a compreensão dos tribunais superiores que, historicamente, têm rechaçado a relevância do “contribuinte de fato”, seja para definir hipóteses de imunidade, seja para estabelecer a legitimidade passiva para requerer a restituição de tributos indiretos. O fato, portanto, de o consumidor final não quitar a fatura de energia elétrica não pode ser pretexto para o não recolhimento do imposto.

De uma forma geral, a tese está em discussão no Supremo Tribunal Federal, com repercussão reconhecida (tema 705) e foco nas empresas de telecomunicações. A despeito de o setor ser outro, o embate jurídico é o mesmo: o dever de recolher o ICMS nos casos de inadimplemento do consumidor final.

Os argumentos jurídicos seriam falta de capacidade contributiva e ofensa à não cumulatividade, pela impossibilidade de repassar o ônus financeiro ao “contribuinte de fato”. O contraponto, porém, está na análise do fato gerador do imposto: como mencionado acima, a adimplência do contrato de venda de mercadorias ou prestação de serviços não é condição para a incidência tributária.

Voltando-se os olhos para o caso das distribuidoras de energia elétrica, mesmo que tomemos as liminares obtidas pela perspectiva econômica, as decisões são problemáticas, porque consideram apenas um lado da moeda. A crise sanitária atual teve por efeito significativa queda na arrecadação tributária: em abril, o Estado de São Paulo teve resultado 19% inferior ao esperado com a arrecadação do ICMS. Segundo Henrique Meirelles, secretário de Fazenda do Estado, a queda será ainda maior em junho e maio. Esse dado, somado ao aumento de despesas públicas também em razão da Covid-19, desenham um cenário financeiro preocupante.

Diante disso, porque, então, beneficiar um ou outro setor, em detrimento das contas públicas no geral? No caso específico das distribuidoras de energia elétrica, lembremos que elas já contam com ajuda financeira do governo federal e, paradoxalmente, dividirão os custos dessa nova ajuda com a camada mais vulnerável da cadeia econômica, os consumidores. O raciocínio vale, por óbvio, para todas as grandes empresas.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça negou o levantamento de depósito judicial realizado pela Telefonica Brasil S.A., com a substituição respectiva por um seguro-garantia. Para a Ministra Assusete Magalhães, que apreciou o pedido, a substituição requerida, sem decisão judicial definitiva quanto ao mérito da demanda, “pode comprometer a implementação, pelo poder público, de políticas sociais e medidas econômicas anticíclicas. Claro está, pois, o risco à economia pública e à ordem social”.

O Supremo Tribunal Federal tem agido na mesma toada: o ministro Dias Toffoli, por exemplo, suspendeu decisão que possibilitava a empresa Intercement Brasil afastar multas e ingressar em parcelamento de ICMS durante a pandemia.

O Poder Judiciário tem papel fundamental nesse debate: se, por um lado, deve preservar direitos e garantias individuais durante a pandemia, deve, também, ponderar suas decisões considerando todos os interesses em jogo, com prevalência inequívoca do interesse público.