Jota
21/07/2021

Por Ana Tereza Parente e Marcele Nectoux

Versão aprovada na Câmara traz impactos ao setor de saneamento

No Brasil, o direito fundamental ao meio ambiente tem amparo constitucional (art. 225 da CF/88). Um dos instrumentos mais importantes para garantir o meio ambiente equilibrado é o Licenciamento Ambiental, procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental (art. 2º I, da Lei Complementar n. 140/2011).

Contudo, mesmo com vasta normativa infralegal versando sobre o tema, das quais têm destaque as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), o Brasil carece, até hoje, de uma norma geral que regulamente o processo de Licenciamento Ambiental. Além disso, o licenciamento acabou por se tornar um procedimento complexo e muitas vezes moroso, sobretudo para empreendimentos de médio e grande porte.

Neste contexto de clara necessidade por um novo marco legal sobre o instrumento de licenciamento, foi aprovado na Câmara dos Deputados, em maio deste ano, após 17 anos de tramitação, o PL 3729/04 (atual Projeto de Lei n. 2159, de 2021 no Senado), que institui a nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental e cujo objetivo geral é modernizar, uniformizar e simplificar as diversas normas e orientações esparsas atualmente vigentes em uma única lei procedimental.

De pronto é importante afirmar que se trata de uma iniciativa meritória no sentido de promoção de segurança jurídica, uma vez que muitos Estados inovaram nos últimos anos no que diz respeito aos processos de licenciamento mas, na ausência de um marco legal da União, sofrem com o questionamento dessas medidas por meio de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs). O texto traz também diversas inovações importantes, das quais destacam-se os artigos que tornam obrigatório a tramitação em meio eletrônico dos processos de licenciamento e a disponibilização por parte da autoridade licenciadora de toda a documentação relativa à licença em uma base de dados. Normas essas alinhadas aos conceitos de transparência e compliance, bastante atuais.

No entanto, o texto é polêmico em diversos pontos, com destaque para o seu impacto para o setor de saneamento. Em vista disso, o objetivo deste artigo é fazer uma análise crítica da redação atual do PL, com ênfase a este setor da infraestrutura. Antes disso, é importante fazer referência do Anexo da Resolução CONAMA n. 237/1997 que estabelece que estão sujeitos a licenciamento ambiental os serviços de utilidade que compreendem estações de tratamento de água, interceptores, emissários, estação elevatória e tratamento de esgoto sanitário, tratamento e destinação de resíduos industriais, de resíduos especiais e de resíduos sólidos urbanos, inclusive aqueles provenientes de fossas.

Ainda, no contexto do Novo Marco do Saneamento (Lei n. 14.026/2020), o licenciamento ambiental é um pilar importante para garantir que a universalização aconteça de maneira sustentável, permitindo o acesso aos recursos naturais às gerações futuras. Para tanto, ele deve considerar os requisitos de eficácia e eficiência, a fim de alcançar progressivamente os padrões estabelecidos pela legislação ambiental (art. 44, da Lei n. 11.445/07).

A necessidade de licenciamento ambiental de empreendimentos que executam tais atividades se dá em razão do uso de recursos ambientais e do seu potencial poluidor.

As estações de tratamento de água (ETAs) geram resíduos para produzir água potável. O mesmo ocorre com as estações de tratamento de esgoto (ETEs)que podem ser grandes geradoras de poluição. Dimensionar corretamente os possíveis impactos e gerenciar a quantidade de resíduos de maneira ambientalmente adequada é imprescindível. Afinal, é este o objetivo da licença ambiental: estabelecer em que condições as atividades potencialmente poluidoras podem ser exercidas e quais são as restrições e as medidas de controle ambiental que deverão ser obedecidas.

Nessa perspectiva, uma crítica ao texto atual do PL que se encontra em processo legislativo no Senado é a proposta contida no art. 8º de não aplicabilidade de licenciamento para uma lista de 13 atividades, entre elas os sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário. A maior parte das atividades elencadas no referido artigo de fato apresentam um baixo impacto ambiental e menor complexidade. Mas, a avaliação deve se dar caso a caso.

Recomenda-se considerar a possibilidade de procedimentos simplificados de licenciamento para tais atividades em função do porte e das demais características das unidades, dos impactos ambientais esperados e da resiliência de sua área de implantação. Ademais, não se pode confundir licenciamento ambiental com outorga de recursos hídricos. São instrumentos diferentes e complementares entre si. Abolir o licenciamento ambiental em razão da existência de outorgas de recursos hídricos não é solução para agilização das atividades.

Para exemplificar, o PL está propondo extinguir o licenciamento ambiental de todas as ETES e ETAS, entre elas a ETA Guandu, a maior estação de tratamento de água potável do mundo em produção contínua. Desde a inauguração da primeira etapa, em agosto de 1955, a ETA Guandu passou por sucessivas ampliações e melhorias técnicas que permitem hoje uma vazão de 45 mil litros por segundo, suficiente para abastecer uma população de mais de 9 milhões de pessoas na região metropolitana oeste do Rio de Janeiro. Atualmente ela opera sem a devida Licença de Operação (LO), em razão da ausência de uma solução para o tratamento e destinação final ambientalmente adequada do lodo gerado pela estação, dentre outros problemas (MPRJ 2020.00163736 – Inquérito Civil nº 03/2020/GAEMA). Sem o procedimento de licenciamento, corre-se o risco de perder o enforcement das ações para mitigar/sanar os impactos ambientais previstos no ordenamento jurídico nacional.

Isto posto, há certamente a necessidade de uma análise mais crítica e debates mais aprofundados do PL, avaliando-se as diferenças regionais e consequências gerais antes de se aprovar uma norma geral que extingue o licenciamento ambiental para todo e qualquer projeto de sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário no território nacional.

Portanto, muito embora a proposta atual contenha diversas inovações importantes, é importante refletir se o Brasil pretende apresentar, rumo à Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), novas regras de licenciamento ambiental que não contemplam licença ambiental para atividades econômicas potencialmente degradantes como são as ETAs e as ETEs, com possíveis impactos sobre condições hídricas, qualidade da água, do ar e do solo, entre outros. Certamente não é este o direcionamento dado pelo Novo Marco Legal do Saneamento.