Estadão
02/07/2020

Karin Yamauti Hatanaka*

O novo marco legal de saneamento foi finalmente aprovado no Senado Federal e segue para sanção presidencial. O assunto não é novo – essa discussão já se arrasta por anos, inclusive com a “quase conversão” de duas medidas provisórias que acabaram por caducar por falta de consenso.

Se a falta de acesso universal ao saneamento já era inaceitável em tempos normais, durante uma pandemia a situação ganha contornos ainda mais dramáticos. Como aceitar que em uma época com tantas preocupações sanitárias haja ainda mais de 30 milhões de brasileiros sem acesso a água tratada e mais de 100 milhões (metade da população) sem acesso a esgoto?

Investimentos em saneamento são urgentes e não há como se esperar que esses recursos venham do poder público, em situação fiscal pressionada, ainda mais agora em razão dos gastos com respostas à pandemia. Nesse sentido, o marco regulatório vira uma importante página endereçando pontos importantes para o investidor privado:

Uniformização da regulação: cada um dos 5.500 municípios brasileiros tem autonomia para editar suas próprias normas e contratos, o que, ademais de aumentar a insegurança jurídica, com normas de diferentes qualidades técnicas e direcionamentos, torna a análise de oportunidades e administração de contratos em diferentes municípios extremamente onerosa. O novo marco centraliza no nível federal – por meio da Agência Nacional de Águas – a edição de normas de referência do setor, cuja adoção será incentivada aos municípios, sendo condição para o recebimento dos municípios de fundos federais pelos municípios. Esses incentivos devem uniformizar, em médio prazo, as diversas regulações existentes, trazendo mais facilidade e segurança às empresas de saneamento.

Regionalização e aumento dos ganhos de escala: hoje ainda há poucos exemplos de reunião de municípios para contratação de prestação de serviços de saneamento. O novo marco prevê que Estados poderão criar regiões metropolitanas e unidades regionais e estabelece incentivos para reunião em blocos de influência. A regionalização gera ganhos de escala, diminui custos e cria possibilidade de subsídios cruzados na mesma região, possibilitando serviços sustentáveis em Municípios deficitários (em que a tarifa cobrada dos usuários não é suficiente para remunerar os serviço) e inclusão de efeitos distributivos – tarifas diferenciadas por classes de consumidores, não por Municípios – evitando que o “pobre do Município rico” pague mais que o “rico do Município pobre” pelos serviços.

Vedação de contratação sem licitação: por razões históricas, companhias estaduais são responsáveis ainda pelos serviços de saneamento na maior parte dos Municípios, por meio de “contratos de programa”, sem licitação. O novo marco veda novas contratações sem licitação. Após o término dos contratos de programa atuais, deverá ser realizada a licitação do serviço, em que as empresas estaduais e privadas participarão em igualdade de condições. A única hipótese de prestação de serviço sem licitação passa a ser a prestação pelo titular (Município) diretamente (e.g., a prestação do serviço por uma autarquia municipal). Esse ponto foi bastante combatido pelas empresas estaduais – como solução de consenso, e para permitir às empresas estaduais que organizem suas atividades antes de uma possível licitação, foi permitido que, até 2022 as empresas possam prorrogar seus contratos de programa existentes (sempre dependendo da concordância do Município) por um prazo de até 30 anos.

Privatizações – A lei anterior previa que caso o controle da empresa estadual passe a um privado (por meio de processo de privatização), o Contrato de Programa é extinto. Como o contrato é o principal ativo da companhia de saneamento, essa previsão inviabiliza qualquer processo de privatização. O novo marco retira essa previsão, possibilitando a manutenção dos contratos.

Há vários projetos importantes com editais divulgados, cujas estruturações contornaram as dificuldades da legislação. O projeto do Rio de Janeiro, por exemplo, em vez de contemplar a privatização da CEDAE, prevê a devolução de parte do serviço e quatro novas concessões na área de cobertura. A CEDAE continua existindo, e fornece água tratada às novas concessionárias para cobertura da capital. Apesar de terem sido modelados com base na legislação à época, os projetos não são incompatíveis com as novas regras, e devem se beneficiar também de um ambiente mais uniforme e seguro.

Em pleno 2020, o país ainda apresenta taxas indignas de acesso a água e esgoto. A aprovação do marco vira uma importante página e estabelece as bases para que investidores possam estabelecer seus planos de investimento nesse setor tão carente de recursos.

*Karin Yamauti Hatanaka é sócia em Infraestrutura e Project Finance do Cescon Barrieu