Valor Econômico
04/06/2021

Por Taís Hirata

Após regulamentação, companhias públicas questionam prazo curto e restrição a extensão de contratos; setor privado elogia texto

A nova lei do saneamento deverá ser alvo de ações judiciais e questionamentos sobre sua constitucionalidade nos próximos meses. Companhias públicas do setor, que até agora não recorreram à Justiça, estão preparando a ofensiva jurídica, que promete ser incisiva. Já as companhias privadas defendem que as regras são claras e cumprem o prometido.

O “gatilho” para a judicialização foi a publicação, nesta semana, do principal decreto de regulamentação da lei. A norma trouxe critérios para a avaliação econômico-financeira das empresas, que terão de comprovar a capacidade para executar os investimentos, sob pena de perderem contratos. Na prática, a norma define o futuro das estatais.

Decreto que coloca a lei em prática foi ‘gatilho’ para as ações judiciais, que já estão sendo preparadas por grupos

Os grupos estaduais, que aguardavam as regras para avaliar a estratégia, tiveram uma recepção muito negativa. A percepção é que há uma pressão para dificultar o cumprimento de requisitos e gerar desestatizações.

O decreto prevê duas fases de comprovação. Na primeira, serão analisados quatro índices financeiros, com base nos balanços dos últimos cinco anos. Na segunda, as companhias terão de apresentar os estudos de viabilidade para cada contrato, mostrando a previsão de investimentos, o projeto de captação de recursos, além de laudos técnicos, feitos por um certificador independente, comprovando a efetividade do plano apresentado.

Uma das principais críticas é em relação ao prazo. As empresas têm até dezembro para entregar toda a documentação, para que os órgãos reguladores concluam a análise até março de 2022.

Um executivo observa que o próprio governo atrasou em sete meses a publicação do decreto, o que diminuiu muito o prazo das empresas para a comprovação. A lei exigia que a norma fosse divulgada até outubro de 2020, mas saiu só nesta semana. Como os estudos exigidos são específicos, as companhias não poderiam ter se antecipado, diz outra fonte. A avaliação é que até mesmo grupos que conseguem cumprir os requisitos terão dificuldade para obter os documentos a tempo.

Para Elias de Souza, sócio da Deloitte, as métricas trazidas pelo decreto são adequadas. Ele também avalia, porém, que o prazo será um desafio. “A execução dos estudos demandará apoio técnico, e muitas companhias ainda precisarão abrir uma licitação para a contratação”, diz.

Outra crítica é que o decreto impede a prorrogação dos contratos de programa (firmados pelas estatais sem licitação, o que era permitido até a nova lei de 2020) como forma de comprovar a viabilidade econômica. Muitas empresas contavam com esse mecanismo. A lógica é semelhante à adotada em contratos privados: com a inclusão de exigências não previstas na data da assinatura, o contrato precisa ser reequilibrado. O decreto permite que isso seja feito por meio do aumento das tarifas ou subsídios estatais. Porém, barra a extensão de prazos.

Na avaliação de Fernando Vernalha, sócio da VGP Advogados, a restrição contraria outras leis existentes e pode ser questionada. “A pretexto de regular a metodologia, o decreto vai muito além e regulamenta as vias de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos”, afirma.

Outro advogado indica mais um argumento que pode ser usado: o contrato é um ato jurídico perfeito. Ou seja, quando um acordo é firmado sob legislação anterior, uma nova lei não pode declará-lo irregular e arbitrariamente desfazer termos estabelecidos.

A Aesbe, associação que reúne as empresas estaduais, diz que ainda analisa o texto e que não há um posicionamento alinhado entre os grupos. Fontes do setor, porém, afirmam que a entidade prepara uma estratégia jurídica robusta e que já teria contratado até mesmo um exministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Procurado, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) diz que considera possível o atendimento ao prazo definido na lei. A pasta também afirma que a possibilidade de prorrogação dos contratos foi vetada porque configuraria em ilegalidade, já que a nova lei do saneamento, aprovada em 2020, barra a extensão. O Ministério da Economia também ressalta que, até agora, as ações judiciais contra o novo marco “não vêm prosperando, inclusive com manifestações do Ministério Público confirmando a constitucionalidade da lei”, diz a pasta.

Do lado do setor privado, a recepção foi muito positiva. “Encerra-se a fase de regulamentação, e a regra do jogo está realmente clara”, afirmou Percy Soares Neto, diretor-executivo da Abcon, que reúne as operadoras do setor privado.

Para o advogado Gustavo Magalhães, sócio do Fialho Salles Advogados, o decreto cumpre o prometido e entrega requisitos claros e objetivos às empresas. Na avaliação de Rafael Machado, do CMT Advogados, os prazos curtos são “compatíveis com a urgência” dos investimentos.

Os analistas ainda são cautelosos na avaliação de qual será o impacto das regras nas estatais. Souza, da Deloitte, diz que ainda é cedo para concluir. Uma fonte do setor privado, porém, estima que cerca de 12 estatais dificilmente cumprirão os requisitos da primeira etapa de comprovação. Nestes casos, a solução prevista é que a empresa seja privatizada ou abra mão de parte dos contratos.