Estadão
01/07/2021

Rubens Naves, Advogado, especialista em saneamento, autor do livro “Água, crise e conflito em São Paulo”, e Sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados

Quando, em 2020, o Congresso aprovou o novo Marco Legal do Saneamento, a solução era apresentada como uma espécie de panaceia, a tábua de salvação para finalmente resolver a dramática deficiência na oferta de um serviço básico, sobretudo para as populações mais carentes. Agora, passados alguns meses desde a sanção do novo marco, as dificuldades que já apontávamos em outras ocasiões começam a aparecer, bem como os dilemas em torno da eficácia na execução de projetos que, de fato, possam nos oferecer a tão almejada universalização dos serviços.

Ainda que não fosse o projeto ideal, o texto original da lei do novo marco legal foi fruto de conversa entre governadores e deputados, e trazia um fator de segurança e equilíbrio para o setor, na medida que permitia a sobrevivência de modelos bem-sucedidos de empresas estatais ou de economia mista na promoção do saneamento em vários Estados, desde que se adequassem às metas de universalização, qualidade e eficiência previsto no novo marco.

Com os vetos do Presidente da República, esses pontos foram afastados, e nessa direção trazem riscos para o desafio da universalização sustentável — esse deveria ser o foco principal, e não a privatização a qualquer custo. Assim, os vetos do presidente, ora mantidos pelo Congresso Nacional, aumentam os riscos de insegurança jurídica (dada a possibilidade de disputa sobre o cancelamento de contratos juridicamente perfeitos durante sua vigência), de perda significativa de valor de mercado de grandes e importantes empresas estatais como Sabesp, Sanepar e outras (o que facilita a ampla privatização do setor), e a desorganização dos sistemas e serviços de saneamento em razão de privatizações açodadas.

A manutenção desses vetos, sobretudo neste momento de pandemia que estamos vivenciando é preocupante. A crise atual provocada pela pandemia de Covid-19 evidencia a importância da presença do Estado na definição de políticas públicas, tanto na área de Saúde como na área de Saneamento. Um exemplo disso foi o anúncio feito no dia 17/3 pelo governo de São Paulo, no sentido de impedir, na fase emergencial decretada no Estado, o corte do fornecimento de água em razão de eventual inadimplência – o que ocorre de forma aguda nas populações mais vulneráveis, assim como a possibilidade de negociação de eventuais débitos existentes em relação à Sabesp. Isso só foi possível pelo fato de uma empresa como a Sabesp, que é uma sociedade de economia mista, poder dialogar e estabelecer regras comuns com o Poder Público numa rapidez exigida como nessa crise.

No mesmo momento em que anunciou essa medida, o governo paulista explicou que fez gestão junto à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para que o órgão regulador consiga convencer as concessionárias de energia da necessidade de aplicarem similar política neste grave momento. Note a diferença: no caso da Sabesp só foi possível a definição dessa política, com a agilidade que o momento exige, dada a presença do Estado na gestão da empresa; no caso das concessionárias de energia, será preciso contar com a boa vontade das  instancias de governança das empresas para que a população possa receber esse alívio em momento tão delicado.

A pandemia de Covid-19 agrava os desafios buscados com a universalização do saneamento básico. Como alertado pelo médico Gonzalo Vecina em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (“Não dá para resolver o desafio da capital sem região metropolitana”, 19/03/2021), o reconhecimento do conceito de interesse metropolitano para a execução de políticas integradas adequadas no âmbito da região metropolitana de São Paulo é aspecto fundamental de uma política efetiva de saúde, e acrescentamos, também, de saneamento básico.

Cumpre destacar que os vetos apostos pelo Presidente da República foram mantidos e todas as atenções recairão sobre o julgamento das ações de inconstitucionalidade que repousam no Supremo Tribunal Federal à espera de julgamento. Isto porque o diploma legal atentará contra o pacto federativo, ao concentrar na União competências regulatórias que, conforme interpretação do Supremo em julgados sobre saneamento básico, são exercidas pelos municípios brasileiros. A mudança, além de ofender a autonomia municipal, causa insegurança jurídica em área sensível para a saúde pública e para o desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades regionais e a preservação do mínimo de dignidade humana no exercício social dos direitos sociais relacionados à prestação do saneamento básico.

A questão, portanto, não é ser contra ou a favor da privatização de estatais, mas definir como o Estado pode e deve agir para assegurar aos cidadãos, sobretudo aos mais necessitados, a garantia de que receberão direitos básicos, garantidos pela Constituição.