Estadão
27/11/2019

Por Cássia Miranda

Na avaliação do relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, o brasileiro Léo Heller, a narrativa de que a entrada da iniciativa privada no setor do saneamento básico tornaria o serviço mais eficiente “é viciada por pressupostos neoliberais, alguns deles já superados teórica e empiricamente”. Essa é uma das principais propostas previstas no Marco Regulatório do Saneamento Básico que deverá ser votado nesta quarta-feira, 27, na Câmara. Em entrevista ao BRPolítico, o engenheiro civil pela UFMG, mestre em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos e doutor em epidemiologia pela mesma universidade afirma que a ampliação da participação privada no setor do saneamento não encontra correspondência nas tendências mundiais. Na avaliação dele, um dos principais problemas do projeto é ignorar o acesso ao saneamento básico como direito humano.

BRP: O projeto é adequado para a realidade brasileira?

Léo Heller: O projeto em discussão visa alterar Lei existente – a Lei 11.445/2007 -, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico. Algumas das alterações propostas são profundas e podem resultar em um completo rearranjo institucional do saneamento no País. A principal direção desse rearranjo é o incremento da inserção da iniciativa privada na prestação dos serviços, substituindo os prestadores públicos. A racionalidade para essa mudança tem sido a narrativa de que, a partir da premissa de que ainda persistem muitos déficits no atendimento populacional pelos serviços de saneamento, seguiria o corolário de que é necessário substituir a prestação pública – que teria falhado – pela privada. Certamente a premissa está correta. Entretanto, dela não necessariamente resulta esse corolário. A minha impressão é de que a narrativa é viciada por pressupostos neoliberais, alguns deles já superados teórica e empiricamente, como os de que a iniciativa privada é fatalmente mais eficiente do que o setor público, de que a burocracia do estado impede a adequada prestação dos serviços ou de que a regulação é suficiente para corrigir todas as “falhas de mercado”.

BRP:O Marco Regulatório do Saneamento que está em discussão no Congresso dialoga com as tendências mundiais?

Léo Heller: Tais pressupostos não encontram correspondência nas tendências mundiais no setor de saneamento. Nesse setor, a prestação de serviços é predominantemente pública. Serviços, mesmo em países com tradições liberais como os Estados Unidos, o Canadá e a Alemanha, são predominantemente ou integralmente públicos. Em alguns países, tem havido uma tendência na direção da remunicipalização de serviços outrora privados, como na França, em países da América Latina e da Ásia, Estados Unidos e outros. Mesmo em países às vezes anunciados como sucessos da privatização, como Chile e Reino Unido, estão se assistindo fortes questionamentos sobre a sustentabilidade do modelo e sua incapacidade de produzir justiça social. Há ainda uma importante reflexão sobre os estreitos limites da regulação em fazer a prestação privada cumprir com objetivos sociais, em um serviço como o de saneamento, considerado um monopólio natural. Ou seja, faltam evidências, em uma variedade de contextos políticos, socioeconômicos e geográficos, de que a maciça substituição da prestação pública pela privada, que resultará do PL, ensejará maior cobertura, trará mais recursos e maior inclusão dos pobres, com dispêndios compatíveis com sua capacidade de pagamento.

BRP: O Brasil precisa de um novo Marco Regulatório para o Saneamento? Se sim, com quais bases?

Léo Heller: A Lei 11.445 de 2007, que o atual PL propõe alterar, já é o marco regulatório para o setor. A pergunta é se ele está obsoleto e se requer alterações. Eu diria que ele permanece bastante válido e avançado, necessitando de algumas atualizações. A principal atualização que defendo, e que o PL simplesmente ignora, é a afirmação do saneamento como direito humano, trazendo para a legislação nacional os compromissos já assumidos pelo Brasil no plano internacional, os quais implicam obrigações do país na observação dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário.

BRP: Com o novo marco, o senhor acredita que até 2030 o País vai alcançar o acesso universal e equitativo a saneamento e água potável e segura para todos como propõe a ONU?

Léo Heller: Penso que não altera positivamente as chances de o País alcançar as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou do Plansab. Para isto, seriam necessários outros movimentos, como o fortalecimento da política pública, a estabilidade do financiamento público e o aperfeiçoamento da capacidade de gestão, sobretudo no nível municipal.