Valor Econômico
07/01/2020

Por Jerson Kelman

A verdade é que a população paga pela infraestrutura que existe e não pela que deveria existir

Em geral, as pessoas defendem o interesse individual com mais afinco do que o interesse coletivo. Por exemplo, a disposição da sociedade de lutar e pagar pelo acesso à água potável é maior do que pelo acesso à rede de coleta e tratamento de esgoto. Prova disso é o maior número de domicílios conectados à rede de água do que à rede de esgoto. Explicação: o acesso à água potável, assim como à energia elétrica, beneficia o núcleo familiar.

No caso do serviço de coleta e tratamento de esgoto, a supressão das valas negras e o controle da poluição dos rios beneficia indistintamente a todos. A compreensão dessa peculiaridade do saneamento é particularmente relevante quando se discute o novo marco legal para o setor.

 A verdade é que a população paga pela infraestrutura que existe e não pela que deveria existir

Coleta e tratamento de esgoto ainda se faz como na virada do século XIX para o XX, utilizando grande quantidade de água e de energia para carrear e tratar uma relativamente pequena quantidade de poluentes. A Fundação Bill Gates premia avanços tecnológicos na área. Mas a realidade é que não há ainda algum verdadeiro sucesso a comemorar. Ou seja, o setor de saneamento não tem alternativa à perseverança na implantação das soluções “clássicas”.

Durante décadas, recursos de impostos no Brasil foram carreados para a implantação dessas soluções pelas empresas públicas de saneamento. Porém, nem sempre esses recursos tiveram a melhor destinação. Em muitos casos, foram canalizados para atender aos interesses das corporações e não das populações A prova é a quantidade de obras inacabadas ou concluídas, mas não funcionando a contento.

Mesmo que num passe de mágica nos tornássemos uma sociedade eficiente no uso do dinheiro público, seria tarde demais porque não há mais recursos fiscais para resolver o gap do saneamento, que se estima na ordem de R$ 600 bilhões. Daí a tentativa de mudar as regras do setor por meio de um projeto de lei – PL, atualmente em discussão no Congresso, cujo objetivo é atrair empresas privadas e exigir melhor governança e produtividade de empresas públicas.

O setor elétrico oferece um bom exemplo do que pode ser alcançado porque praticamente todos os domicílios brasileiros têm acesso à eletricidade, enquanto apenas metade da população tem acesso à rede de coleta de esgoto. A diferença principal entre os dois setores é que a Constituição de 1988 foi muito clara quando definiu que a energia elétrica é um serviço público sob responsabilidade da União. O governo federal cumpriu o seu papel criando uma única agência reguladora, a Aneel, que elaborou um único conjunto de regras e uma única metodologia tarifária para o país inteiro.

Por outro lado, a Constituição foi silente sobre quem é responsável pela prestação do serviço de saneamento. Diz apenas que serviço público de natureza local é de responsabilidade municipal, deixando o esclarecimento do que isso significa para a legislação ordinária. Passados mais de 30 anos, o PL finalmente esclarece que quando dois ou mais municípios compartilham uma mesma infraestrutura, as decisões têm que ser compartilhadas porque o interesse é comum e não local. Trata-se de um avanço porque a interpretação até agora prevalecente, embora equivocada, é que o serviço público de saneamento seria sempre de responsabilidade municipal.

A dicotomia entre empresas estatais controladas pelos governos estaduais e a titularidade entendida como municipal, mesmo nos casos em que flagrantemente não era, criou um conflito de interesses entre as administrações estadual e municipal, que prejudicou a universalização. O PL corrige essa distorção estimulando, e em alguns casos obrigando, a prestação do serviço e a correspondente regulação-fiscalização na escala regional e não municipal. O objetivo é tomar partido do efeito escala, mesmo quando não haja compartilhamento de infraestrutura.

No mesmo diapasão, o PL atribui a uma agência federal, a ANA, a responsabilidade de elaborar diretrizes gerais a serem obedecidas pelas entidades locais, com responsabilidade de executar cálculos tarifários. Pretende-se com isso elevar a qualidade da regulação econômica do setor.

Embora o PL seja inequivocamente um passo à frente, não se pode imaginar que apenas o aumento da participação da iniciativa privada resolverá todos os problemas do setor. É fato que empresas privadas tendem a ser mais produtivas do que as públicas, entre outras razões porque não estão submetidas às mesmas restrições administrativas. Porém, a universalização da prestação do serviço demandará, na maioria dos casos, não apenas aumento de produtividade mas também a construção de novas instalações, que precisarão ser remuneradas e amortizadas. Ou seja, em muitos casos haverá aumento tarifário.

Aí reside um risco político: a maior parte da população supõe erroneamente que paga por um serviço dotado de todas as instalações que seriam necessárias. Mas que recebe em troca um serviço deficiente devido apenas à inoperância ou incapacidade dos administradores do serviço. Porém, a verdade é que a população paga pela infraestrutura que existe e não pela que deveria existir. Demagogos poderão no futuro explorar situações em que a evolução tarifária suplante a da inflação. É por isso que deve ser visto com desconfiança um artigo do PL que magicamente impõe como meta para 2033 que 99% dos brasileiros tenham acesso à água potável e 90% ao saneamento.

Pretende-se assim que as empresas privadas resolvam em poucos anos o que as empresas públicas não resolveram em muitas décadas. Isso sem realizar qualquer avaliação de qual é a real capacidade da população, em cada área de concessão, de pagar pela infraestrutura necessária para atingir a meta. Melhor seria deixar que metas fossem fixadas em contrato, com a devida consideração à capacidade de pagamento da sociedade, tanto na forma de tarifas quanto de impostos. E não, como é tradicional entre nós, registrar boas intenções na lei. Só conseguiremos mudar a realidade quando reconhecermos que o tamanho do passo deve ser proporcional ao tamanho da perna.

Jerson Kelman é professor da Coppe-UFRJ. Foi presidente de duas agências reguladoras (Ana e Aneel) e de duas concessionárias de serviço público (Light e Sabesp).