Valor Econômico
27/05/2020

Por Jerson Kelman

PL 4162, que está no Senado, pode mitigar boa parte dos problemas que travam o setor

Ninguém sabe quanto tempo a corona-crise durará e muito menos como a economia póspandemia se comportará. Uma recuperação rápida, se ocorrer, será provavelmente puxada pelo investimento em infraestrutura, que tem o mérito de criar empregos e eliminar os gargalos limitadores de nossa produtividade. Haverá oportunidades no setor de saneamento, onde muito ainda precisa ser feito para prover água tratada aos 35 milhões de brasileiros sem-serviço (como pedir que lavem as mãos?) e coleta/tratamento de esgoto a 100 milhões que vivem em ambientes insalubres.

Nos países ricos, esses investimentos foram feitos décadas atrás, frequentemente com a participação de recursos fiscais. No Brasil de hoje, com o Tesouro exaurido, essa alternativa não existe. Antes da crise, administradores de bilhões de dólares de fundos de pensão zanzavam pelo mundo em busca de negócios para remunerar o capital ao longo de muitos anos, aceitando taxas relativamente modestas, porém sem previsíveis sobressaltos. Investimentos de preferência sustentáveis, tanto social quanto ambientalmente, como é o caso do setor de saneamento.

Há frequentes pressões para que concessionárias reduzam tarifas ou assumam tarefas alheias a seu mandato

É razoável supor que no pós-crise esses potenciais investidores estarão de volta. Porém, se aqui permanecer o atual ambiente de insegurança jurídica e regulatória, é provável que passem ao largo e procurem portos mais seguros para ancorar o dinheiro dos pensionistas. E o Brasil continuará sendo o país do futuro.

Atualmente a regulação do saneamento é pulverizada e quase sempre de qualidade inferior à do setor elétrico, onde a regulação é centralizada na ANEEL. Como o serviço de energia elétrica é de responsabilidade federal, são relativamente poucas as ações na Justiça iniciadas por autoridades locais – prefeitos, governadores ou promotores de Justiça. Nesse sentido, há significativa vantagem das concessionárias de eletricidade sobre as de saneamento, que são frequentemente enredadas em conflitos com a administração pública local, causando abalos nos respectivos equilíbrios econômico-financeiros.

O mais comum é o prefeito, a Câmara de Vereadores ou o promotor de Justiça demandar serviço de melhor qualidade – o que é perfeitamente legítimo -, mas não concordar com a inclusão no cálculo tarifário do investimento necessário para materializar benfeitorias sem previsão contratual. Conflitos que têm origem no desconhecimento de que as tarifas são calculadas para remunerar a infraestrutura existente e não a que deveria existir. Há também frequentes pressões para que a concessionária injustificadamente diminua as tarifas ou assuma responsabilidades estranhas a seu mandato. E cada município pode ter suas próprias regras. Uma Babel!

A boa notícia é que esses problemas estão na iminência de serem mitigados, dentro do que é possível alcançar sem desrespeitar as balizas constitucionais. Basta que seja aprovado o novo marco legal para o setor, o PL 4162/2019, em discussão final no Senado.

O PL tem muitas qualidades. A começar por finalmente esclarecer, depois de mais de duas décadas da promulgação da Constituição, que o município não detém o direito de decidir sozinho sobre o saneamento quando compartilhar alguma instalação necessária para a prestação do serviço com municípios vizinhos. Tipicamente, é o caso de regiões  metropolitanas e do semiárido nordestino, onde uma adutora frequentemente abastece diversas cidades.

Mesmo quando o serviço for de interesse local, e portanto de responsabilidade exclusiva do município, o PL incentiva a formação de blocos de prestação de serviço para tomar partido do efeito escala e propiciar uma regulação mais profissional e homogênea.

O PL atribui à Agência Nacional de Águas (ANA) a responsabilidade de elaborar diretrizes para a regulação do saneamento. Trata-se da mesma medida, proposta 20 anos atrás pela administração FHC para melhorar o ambiente regulatório, lamentavelmente engavetada pelo Congresso. Se finalmente for aprovada, a ANA passará a exercer uma atividade que poderia se chamar de “regulação indireta”. Não terá a mesma eficácia da “regulação direta”, como a praticada pela ANEEL. Mas é o que dá para fazer sem alterar a Constituição.

Caberá à ANA emitir normas gerais e verificar o cumprimento por parte das agências reguladoras locais que farão a maior parte da regulação, inclusive o cálculo de tarifas, a fiscalização do cumprimento das metas contratuais e de qualidade do serviço.

Simplificadamente, pratica-se hoje no Brasil dois tipos de regulação econômica, a contratual e a discricionária. A contratual é predominante utilizada quando o grosso do investimento ocorre ao início da concessão, como é o caso da construção e operação de uma estação de tratamento, de água ou de esgoto. Ou, para fazer um paralelo com o setor elétrico, no caso de construção e operação de uma linha de transmissão. Como há competição pela concessão, presume-se que o vencedor tenha se comprometido com um nível tarifário capaz de assegurar o equilíbrio econômico-financeiro, pelo menos na partida. As atualizações tarifárias previstas em contrato são relativamente simples. Consideram, por exemplo, a correção monetária dos insumos e a atualização do custo de capital de terceiros.

Uma concessão plena de água e esgoto pressupõe investimentos ao longo de décadas que dependem da evolução demográfica, urbana e tecnológica. Como é impossível prever contratualmente o que vai acontecer em prazos tão largos, o mais indicado é adotar o segundo tipo de regulação, o discricionário. Nesse caso, confia-se numa agência reguladora para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão por meio de revisões tarifárias periódicas. Como essas revisões são feitas sem que haja uma licitação para balizar o nível tarifário justo, a agência emula a inexistente competição.

Sintomaticamente, a maior parte dos contratos de saneamento das empresas privadas adota o primeiro tipo de regulação, apesar do segundo parecer mais indicado. Isso ocorre devido à desconfiança com relação à capacidade da agência reguladora local de se manter tecnicamente capaz e independente do poder local ao longo de décadas.

O PL atribui à ANA a tarefa de mitigar essa desconfiança. Para que isso efetivamente ocorra, há muito trabalho pela frente. Para começar, os senadores devem comparecer às sabatinas para reprovar os candidatos à diretoria da ANA, indicados por arranjos políticos de ocasião, que não tenham conhecimento técnico e econômico para exercer tão elevadas responsabilidades.

Jerson Kelman é autor do livro “Desafios do Regulador”. Foi presidente da ANA e diretor-geral da ANEEL