Por Thiago Acca – Valor Econômico

30/05/2019 – 05:00

Tratar de certos temas pela ótica jurídica por vezes pode soar, no mínimo, suspeito ou mesmo sem sentido. Isso provavelmente ocorre quando se pretende abordar a água como um direito. Afinal, se este é um bem essencial para a nossa própria sobrevivência, não seria evidente a imprescindibilidade de usufruirmos dele e, portanto, torná-lo um direito seria como se criássemos um direito a respirarmos, ou seja, completamente desnecessário?

Essa primeira impressão facilmente ruirá diante de um problema que se mostra, de fato, extremamente complexo em detrimento da sua aparente singeleza. Afinal, o diabo mora nos detalhes.

Primeiro ponto a ser elucidado: as regras jurídicas estabelecem claramente um direito à água ou é preciso um grande esforço interpretativo para chegar a tal conclusão? Se, por um lado, a Constituição não garante expressamente a água como direito fundamental, por outro, não se faz necessário o desenvolvimento de um elevado ônus argumentativo para defender essa posição.

As regras jurídicas estabelecem claramente direito à água ou é preciso grande esforço interpretativo para chegar a tal conclusão?

Isso porque, o próprio texto constitucional incluiu em seu art. 6º a alimentação como um direito fundamental. Valendo-se de outras regras, como o art. 4º, I da Lei 11.346/2006, contata-se que a água é compreendida como um meio para trazer segurança alimentar e nutricional.

Além disso, a Resolução 64/292 da ONU, aprovada em 2010 por 122 votos e nenhum contra, reconheceu a água como um direito humano que se mostra inclusive essencial para o gozo de todos os outros direitos humanos. Mesmo antes de tal resolução o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais havia adotado, em 2003, o Comentário Geral nº 15 que ao interpretar o respectivo Pacto Internacional entendeu que o direito à água é um pré-requisito para a realização de outros direitos humanos.

Nesse sentido, não por acaso, a ONU ao adotar em 2015 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) incluiu como um dos 17 objetivos “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos”.

Segundo ponto a ser elucidado: o que água e cultura podem ter em comum? Essa é, sem dúvida, uma intersecção que ocorre claramente nos documentos internacionais elaborados pela ONU. O já citado Comentário Geral nº 15 entende que o direito à água não deve ser interpretado de forma restritiva como, por exemplo, simplesmente referindo-se à quantidade mínima necessária para cada pessoa ou família.

De acordo com o comentário a água deve ser tratada não primeiramente como um bem econômico, mas sim como um bem social e cultural. Ademais, o comentário estipula como um dos aspectos do direito à água a sua aceitabilidade. Tal critério dependerá de aspectos mais culturais do que físicos ou químicos, pois ainda que a água seja considerada potável ela deve ser aceitável em gosto, odor e coloração para cada pessoa. O que sugere a possibilidade de cada grupo cultural possuir critérios de aceitabilidade diferentes.

Nesse contexto, destaca-se a relação das comunidades indígenas com a água. De acordo com o “Fact Sheet” nº 35 da ONU sobre direito à água este bem desempenha um papel essencial no cotidiano dos diferentes povos indígenas exercendo um papel central nas suas instituições, cultura e tradições. É, portanto, um elemento que pode ser crucial para a manutenção do modo de vida dessas comunidades.

Imaginemos uma comunidade indígena que esteja localizada à beira de um rio. É muito provável que tal localização esteja vinculada a sua visão de mundo. Dessa forma, a relação com o rio é dada não apenas para pesca, mas também para a transmissão de determinados conhecimentos como ensinar as crianças a nadar ou até, eventualmente, a contos e lendas gerados pelo convívio diário com o rio. Suponhamos também que esse mesmo rio, por qualquer motivo, fique poluído. Não bastará para a reparação de tal direito fornecer água potável para essa suposta comunidade indígena. É preciso mais. É imprescindível reestabelecer sua relação com as águas do rio.

Também é preciso considerar que alguns povos indígenas, entre outros grupos, conforme o “UN World Water Development Report” 2019 têm apresentado muitos obstáculos para obter acesso à água potável e saneamento básico somando-se a isso o fato de que não se vê políticas públicas específicas para tais comunidades.

Em um ambiente político e social tão polarizado, olhar para o outro parece cada vez mais improvável. A sociedade é sociológica e antropologicamente composta por grupos que estabelecem relações diferentes com o mundo que o cerca e o direito deve refletir essa realidade.

O genial antropólogo Malinowski em sua obra Argonautas do Pacífico Ocidental escreveu: “cada cultura tem seus próprios valores; as pessoas têm suas próprias ambições, seguem seus próprios impulsos, desejam diferentes formas de felicidade.

Em cada cultura encontramos instituições diferentes, nas quais o homem busca seu próprio interesse vital; costumes diferentes por meio dos quais ele satisfaz às suas aspirações”.

Se queremos definitivamente alcançar uma sociedade livre, justa e solidária como apregoa o texto constitucional com um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, I) olhar para o outro e admitir as diferenças, inclusive de tratamento jurídico, para os diversos bens, como a água, mostra-se essencial.

Thiago Acca é doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor da FGV Direito SP e pesquisador do Centro de Direitos Humanos e Empresas (CeDHE) na mesma instituição.

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