Por Francisco Góes – Valor
26/04/2019 – 05:00

O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o economista Joaquim Levy, considera que a queda nas consultas para novas operações de crédito, no 1º trimestre do ano, confirma uma
tendência observada desde o fim de 2018. Para ele, o comportamento apático das consultas e o grande volume de pré-pagamentos de empréstimos por empresas junto ao banco demonstram que o BNDES precisa criar um novo
modelo de negócios. “Perdeu o subsídio, vai ter que correr mais rápido”, disse Levy ao Valor. Ele mostrou-se otimista com a recuperação nas consultas uma vez aprovada a reforma da Previdência. “Vai ter impacto enorme”, previu. Por
outra parte, disse, o banco está buscando novos mercados, como nas áreas de saneamento e gás natural. Levy é favorável à abertura do mercado de gás natural, dominado pela Petrobras. “Acho que a Petrobras está precificada abaixo de seu valor. Mas às vezes ela gosta de sentar em cima [de setores] e fechar o mercado.” Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida na sede do banco, no Rio, na tarde de ontem.

Valor: Como avalia o desempenho do banco no 1º trimestre, o primeiro sob sua gestão?

Joaquim Levy: A economia está num momento de expectativa, e os números do desempenho do BNDES refletem este momento. A gente vê que as empresas ainda estão aguardando para tomar decisões. O número de consultas ao banco ainda é modesto, mas achamos que vai mudar à medida que ocorrerem eventos como a reforma da Previdência. Por outro lado, esses três meses foram bastante intensos em abrirmos novos caminhos. Incrementamos bastante as janelas para as pessoas entenderem o esforço de transparência do banco. Não adianta ter os dados no fundo da internet, difíceis de serem entendidos. Tem de ser direto, porque as questões são legítimas e muitas vezes temos boas respostas. Voltamos a participar de discussões fundamentais para a economia, especialmente em infraestrutura. Estamos presentes na discussão das opções para a privatização da Eletrobras, nas diversas formas com que os governadores podem fazer seus Estados mais ricos. Estamos traçando estratégias para vendermos as participações que temos em companhias excelentes, mas cuja precificação ainda sofre por causa dos eventos da última década, como a Petrobras, que tem enorme valor, ainda mais com o foco que a nova administração está dando. E traçando os caminhos para devolvermos os recursos para o Tesouro, assim como usarmos o nosso capital da maneira mais efetiva para apoiar o investimento e a melhora da gestão das empresas brasileiras. Nesse contexto, também deslanchamos linhas importantes, como a voltada para as micro e pequenas empresas, o BNDES Garagem. Mas fatos passados também tomam um tempo considerável, seja da diretoria, seja do corpo técnico do banco. Mas esse esforço é importante para voltarmos a ter energia para construir o presente e o futuro.

Valor: A queda nas consultas e aprovações era esperada?

Levy: Hoje está todo mundo preocupado porque não tem tantas contratações nos últimos meses. Em dezembro, eu olhei um gráfico que mostrava que as consultas caíram. Se juntar o declínio de consultas com os pré-pagamentos [feitos por clientes em 2017 e 2018], concluímos que temos que ter um novo “business model” [modelo de negócios]. Se achar que tudo vai continuar igual, ótimo. Se ficar muito surpreendido de que não está igual e achar que é um problema de gestão, porque algo está travado ou sei lá o que, não está entendendo a realidade. Então qualquer pessoa que olhasse o gráfico [de desempenho] de três meses atrás e olhar o gráfico de hoje verá que trata-se de uma continuação. Temos que nos reorganizar. Não adianta chorar as pitangas porque perdeu o subsídio.

Valor: Os dados já evidenciavam queda de demanda futura?

Levy: Demanda futura não; é a ciência. Pega o gráfico publicado e ele mostra consultas, contratações e desembolsos. Notei algum problema porque a contratação deu um salto em um período de cinco, seis meses, e a consulta só declinando. Era óbvio [que haveria queda].

Valor: Qual foi o problema?

Levy: Não é um problema da administração. A realidade mudou. A economia está devagar e aqui não é mais a casa do dinheiro barato. Por isso desde o dia número um eu estou dizendo que temos que fazer um novo “business model”. E não adianta ficar inventando produtinho, nova linha de não sei lá o quê.

Valor: Como vai ser esse novo modelo de negócios?

Levy: Hoje [ontem] fizemos, por exemplo, um seminário sobre construção civil. [Buscamos entender] como está o mundo da construção civil. Como a construção civil está se preparando para este novo momento? Quais são as lições que eles aprenderam? Não queremos só ter as grandes empresas e também não queremos que sejam só estrangeiras a resolver tudo. Vamos ver como conseguimos apoiar as médias empresas. Aí entram mudanças no BNDES que nem todo mundo percebe. Para apoiar, não adianta só dizer que vai ter uma linha de crédito. Como vai ser a análise de crédito? Qual vai ser o risco que eu vou estar preparado para tomar? São coisas técnicas, mas estão interligadas. Se for tomar mais risco, preciso de mais capital. Isso se liga a como vou fazer minha alocação de capital.

“A economia está num momento de expectativa e os números do desempenho do BNDES refletem esse momento”

Valor: Uma crítica recorrente ao banco sempre foi a demora em analisar e aprovar projetos.

Levy: Por que era demorado? Porque tinha [uma estrutura] burocrática que permitia tomar risco zero, acho ótimo, sempre apreciei. Mas poderia demorar porque coisa de graça todo mundo topa, né? Tomar dinheiro 4% ou 5% mais barato [do que o mercado], em quantidade enorme de volume. É isso que vai ter que mudar. Algumas coisas já estão mudando. Trouxe o Roberto [Marucco, diretor de estratégia e transformação digital], que conhece TI [tecnologia da informação] e processos, para ajudar a acelerar a simplificação de processos no banco.

Valor: Qual é a situação hoje?

Levy: Estamos tendo que reinventar o business. Evidente que o nível de consultas que herdamos de 2018 era
acompanhado por um pico de contratação [de operações] insustentável. Então temos que ter novos business. Posso ficar aqui sentado esperando chegar, mas [também] tem que ter prospecção. Me ofereci a ir aos lugares para apresentar o BNDES. Falei em prospecção. Mas depois terei capacidade de risco, de análise? Vou ter estômago para o risco que estou indo buscar? Uma coisa é emprestar para a Suzano baratinho e ela põe todas as garantias que você quiser. Outra coisa é pegar empresa média. Voltando à construção, que citei antes. Estou disposto a ajudar a média empresa a melhorar a gestão. O que preciso depois em termos de análise de risco? Então uma das coisas que tenho chamado a atenção é o seguinte: tem que balancear o que é puro risco de crédito com o impacto, a efetividade [do banco nos empréstimos]. Porque eu estou fazendo isso, e não outro banco? Qual é a nossa real vantagem competitiva hoje?

Valor: Aí entra a infraestrutura?

Levy: Se não tiver infraestrutura andando, o resto da indústria, só pelo consumo próprio, eu, como economista, não vejo [deslanchar]. Não via quando era ministro [da Fazenda, em 2015] e continuo não vendo. Vai acontecer um milagre? Não vai.

Valor: Mas infraestrutura é um setor que o banco sempre apoiou.

Levy: Mais ou menos. Sempre apoiou dando dinheiro barato. Poderia vir qualquer bola [projeto] e eu [BNDES] dava
dinheiro barato. Era ótimo, fazia contrato, emprestava R$ 10 bilhões. Ótimo.

Valor: Qual vai ser o atrativo do banco agora para que as empresas apresentem projetos?

Levy: Qualidade [de projeto]. Não vamos dar só financiamento para qualquer coisa que vem, aí demora dois anos até eu ter as garantias. Isso não funciona mais. Meu papel, para motivar a empresa, é o banco estar [presente] desde o começo, desde o desenho do projeto. Devemos cobrar um “fee” [taxa] para ajudar a estruturar alguma coisa? Talvez, em alguns casos, sim. Então realmente temos que repensar o “business model”. Não é uma coisa única do BNDES. Não foi por acaso que eu acabei aqui. Vejo [essa reflexão] também no Banco Mundial, que precisa repensar parte de seu “business model”. 

Valor: Por quê?

Levy: Porque só emprestar para governo não resolve mais. Qual era a infraestrutura que [o BNDES] apoiava? Fazia
empréstimos enormes para projetos, alguns que iam dar certo, outros que não iam dar certo. Os projetos mais
desafiadores, inclusive de rodovias, têm uns que não fecharam até agora. Porque apoiava desde que fosse grande empresa, em projeto que tivesse todas as garantias, e dava linha de crédito barata.

Valor: Haverá interesse de novos projetos de serem financiados pelo banco: ferrovias; a TAG, de gás natural, os
aeroportos já licitados?

Levy: Talvez sim, talvez não. Os aeroportos, se for pegar dinheiro barato, vão tentar pegar dinheiro no Nordeste. Como o BNDES é o que fica mais na vitrine, todo mundo quis acabar com o subsídio do BNDES, o que é bom. Só que continua o subsídio do FGTS, do crédito agrícola. Tem um princípio da economia que diz que, quando tem uma distorção, se consertar só um pedacinho, pode acabar em situação pior da que tinha originalmente. Não estou dizendo que seja exatamente isso. Mas, se tira o subsídio do BNDES e deixa em todo o resto, pode aumentar a distorção [na economia]. 

“Um princípio da economia diz: quando tem uma distorção, consertar só um pedacinho pode acabar em situação pior”

Valor: Infraestrutura hoje é 40% do banco aproximadamente.

Levy: E vai ser. Isso é outra coisa que tenho chamado a atenção. Capital nos dias de hoje não é o maior problema. Precisa retreinar a força de trabalho [do banco] para ter impacto no projeto e tem que fazer isso de maneira que seja
autossustentável. O principal ativo do banco são os funcionários.

Valor: A aposta do banco então é que a melhoria nas consultas ocorra com a reforma da Previdência?

Levy: Em termos de consultas autônomas, certamente [a reforma] vai ter impacto enorme. Mas além disso estou
procurando novos mercados.

Valor: Pode dar exemplos?

Levy: Gás natural e saneamento. Vamos fazer saneamento como a Caixa ou a Funasa fizeram historicamente? Não. Mas queremos fazer saneamento com o setor privado. Faz sentido emprestar para companhias do setor privado e são coisas que têm volume. O gás, todo mundo adora falar de produtividade da indústria, que a indústria está morrendo etc. Uma das razões é a energia. Se [o custo do gás] cair de US$ 12 por milhão de BTU para US$ 6, será grande coisa porque há alguma coisa errada em um país que tem produção de gás na “esquina” o insumo custar US$ 12 por milhão de BTU.

Valor: Tem que abrir o mercado da Petrobras, hoje verticalizado?

Levy: Tem que abrir esse mercado. Gosto de Petrobras, mas acho que a Petrobras está precificada abaixo de seu valor. Mas às vezes ela gosta de sentar em cima [de setores] e fechar o mercado.

Valor: Como o BNDES vai se envolver nas discussões do gás?

Levy: De todas as maneiras. Estamos discutindo com a Petrobras, com o governo. Devemos fazer alguns eventos, estamos tentando fazer contribuições à medida provisória que está no Congresso, a MP do Gás para Crescer. Estamos participando de discussões com vários Estados, privatização, apoio etc. Temos que mostrar como uma nova política de gás vai ser bom para o Estado. O Paraná, por exemplo, se conseguir levar gás para as indústrias revitaliza a economia. O “shale gas”, na economia americana, baixou o custo de produção da indústria dos Estados Unidos. Pela primeira vez em 30 anos, as pessoas falaram em reindustrialização. Foi por que o governo deu subsídio para A, B ou C? Não, foi porque o insumo ficou barato. E ficou barato porque fizeram regulação de “shale gas” que permitiu a concorrência nos gasodutos.

Valor: O banco continua com projetos para estruturar a privatização de distribuidoras de gás?

Levy: Sim, mas, dentro da privatização, não é só vender [o ativo] para empresa privada e continuar fazendo a mesma coisa associada à Petrobras. Esse é uma das grandes coisas do Paulo [Guedes, ministro da Economia]. Como ele fala as coisas de maneira aberta, é verdade que no gás estamos perdendo oportunidade a troco de nada. A política da Petrobras no gás tem que ser melhorada. É uma política de monopolista mão pesada.

Valor: Tem perspectiva de desembolso para este ano?

Levy: O desembolso neste ano ainda vai em uma certa inércia do contratado no ano passado. Minha preocupação maior é a contratação, que vai depender de um realinhamento da nossa força de trabalho. Temos que fazer uma realocação da força de trabalho, inclusive descobrindo as reais capacidades dela porque agora a turma vai ter que mostrar a que veio. Não pode ser 200 caras em 2,5 mil. Tem que ter todo o exército no “deck” para operar.

Valor: O problema em termos de contratação de novas operações de crédito então é 2020 e 2021?

Levy: Cada ano é um ano. Não fui eu que mudei as condições de contorno da atuação deste banco. Ou as pessoas já
entenderam que as condições mudaram dramaticamente ou de uma forma estrutural ou não entenderam. O banco não vai ser igual com Joaquim ou sem Joaquim. Uma instituição que tinha uma vantagem que custava ao Tesouro R$ 20 bilhões ao ano quando perde essa vantagem do contribuinte tem que se repensar e os participantes têm que trabalhar de outra maneira. Perdeu o subsídio, vai ter que correr mais rápido.

Valor: Como tem sido a ação da alta administração do banco nesse período de transição?

Levy: Quando uma organização muda, é preciso uma combinação de clara orientação e às vezes foco em detalhes para mudar práticas habituais, e ouvir o corpo técnico. Isso é ainda mais importante no caso do BNDES, cujo corpo técnico é muito estável, com pouca renovação ou mesmo experiência externa. Isso foi um dos motivos de trazer uma direção com experiência bem diversificada e de fora, já que essa é a única alteração de pessoal factível em face ao acordo coletivo que os funcionários estabeleceram historicamente. É um momento que, sem barulho, temos que rever a efetividade e alinhamento de nossos instrumentos e políticas. Para isso, fizemos vários workshops nos fins de semana e agora com a chegada dos diretores Roberto Marucco e Denise Pavarina deve se dinamizar no que tange a empréstimos indiretos e industriais, além da contribuição fantástica que a diretora Karla Bertocco tem dado na infraestrutura. A experiência da diretora Eliane Lustosa em toda a área de mercado de capital e a evolução dos times sob a liderança dela são muito encorajadoras. Eu não gosto de quem usa como ferramenta de gestão falar mal dos antecessores e mudar tudo imediatamente. Mas é evidente que o banco enfrenta desafios pela própria forma com que atuou, e a alta administração, inclusive eu, tem gasto bastante tempo lidando com um legado passado, que é bem conhecido e que tem sido alvo do escrutínio do TCU, do MPF e do Congresso. O banco já incorporou lições e meu desejo é que o aprendizado ajude a uma conclusão rápida dessa fase com a elucidação satisfatória das questões ainda pendentes.

Valor: Como conduzirá a devolução de recursos ao Tesouro?

Levy: Vou tratar como sempre tratei todas minhas coisas na vida, tecnicamente. Vai ser resolvido tecnicamente.