Governo não conseguiu consenso para aprovar MP no Congresso. País tem 72 milhões de pessoas sem esgoto 

Leo Branco e Renata Vieira – O Globo

24/05/2019 – 04:30 / Atualizado em 24/05/2019 – 07:37

SÃO PAULO e BRASÍLIA – Uma queda de braço entre o governo federal e estados em torno de mudanças nas regras de contratação de serviços de saneamento deve enterrar mais uma oportunidade de destravar investimentos no setor. Segundo estimativas de técnicos do Ministério da Economia, cerca de R$ 700 bilhões poderiam ser investidos na universalização do acesso à água e esgoto no país até 2033 com a aprovação de uma medida provisória (MP) que atualiza o marco regulatório do saneamento. No entanto, o governo não conseguiu chegar a um acordo no Congresso para votar a medida antes de 3 de junho, quando perde a validade.

Atualmente, 72,4 milhões de brasileiros, cerca de 35% da população, não têm acesso à rede coletora de esgoto, segundo dados da pesquisa Pnad Contínua, divulgada anteontem pelo IBGE. São pessoas que vivem em 44% dos domicílios brasileiros. A pior situação é no Norte, onde 79% dos lares não têm saneamento. No Sudeste, são 12%. Em países desenvolvidos, o índice de cobertura geralmente é de 100%. Apesar do atraso histórico, a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann (PSL-SP), admitiu na quinta-feira que a MP deve caducar e ser substituída por um projeto de lei .

O consenso foi dificultado por uma carta assinada por 23 governadores contra a MP, sob o argumento de que ela obriga as cidades a privatizar seus serviços, prejudicando municípios pequenos, pouco atraentes para a iniciativa privada. O governo argumenta que esse risco foi afastado na MP com a previsão de formação de blocos regionais que garantam a universalização do saneamento. 

Medida foi editada ainda no governo Temer

A MP, relatada pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), foi editada pelo ex-presidente Michel Temer em 28 de dezembro. Em linhas gerais, o texto obriga os municípios — os “donos” do serviço de água e esgoto desde a Constituição de 1988 — a licitar a concessão ao fim de um contrato, abrindo espaço para empresas privadas. Hoje, prefeituras podem estender contratos com as companhias estaduais de saneamento, na maioria estatais, sem licitação.

— Ou os governadores tomam uma atitude agora ou condenam a população a ficar sem atendimento — criticou o secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord. — Estados e municípios reclamam da crise fiscal e financeira, quando uma simples assinatura traria esse volume de investimentos e empregos para o Brasil até 2033.

O texto da MP também dá mais poder à Agência Nacional das Águas (ANA), do governo federal, ordenando um setor regulado por 49 agências regionais. Para Percy Soares Neto, diretor da Abcon, associação das empresas privadas de saneamento, o cipoal de regras afugenta investidores:

— No ano passado só tivemos três novas parcerias público-privadas no Brasil inteiro. É um ritmo baixíssimo diante da urgência do problema. 

Entidades ligadas às estatais de saneamento são contra as mudanças estabelecidas na MP. O temor delas é que o novo texto acaba com a figura jurídica do “contrato de programa”, uma espécie de convênio assinado entre municípios e estatais. A MP, ao obrigar municípios a licitar o serviço, quer transformar esses contratos em concessões de fato, que devem passar por processos licitatórios assim como as demais áreas do poder público. 

Saída estaria no modelo atual

A Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (Aesbe), que há duas semanas articulou a carta de governadores contrária à MP, defende a manutenção do sistema atual de contratação. O marco legal do setor, de 2007, estipula levar o serviço de água e esgoto a todos os brasileiros até 2033. Mas isso custaria, nas contas do governo, mais de R$ 700 bilhões. Desse total, quase R$ 500 bilhões só para construir redes de água e coletoras de esgoto.

Apesar das dificuldades das estatais estaduais para concretizar os investimentos e melhorar os indicadores de saneamento, Roberto Tavares, presidente da Aesbe, diz que a saída está no modelo atual:

– A esmagadora maioria dos municípios brasileiros não teria condições de fazer uma licitação de um tema complexo como saneamento básico. O ideal seria aliar isso a uma política nacional de universalização do saneamento coordenada pela União e com recursos de fontes como FGTS, Caixa e BNDES.

Roberval de Souza, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), que representa trabalhadores de estatais, também é contra o texto da MP por enfraquecer a atuação das estatais de saneamento num cenário de maior competição com as empresas privadas. Para ele, o governo federal tem a intenção de desestatizar as companhias de saneamento para cobrir o rombo fiscal dos estados:

– As estatais serão usadas como moeda de troca no cenário de aprovação da MP. Mas não é o saneamento que vai pagar a conta de anos de má gestão fiscal dos governadores – diz Souza.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou que ainda pretende discutir, nas próximas semanas, as mudanças no marco regulatório do saneamento. Caso não haja acordo para votar a MP, o plano é iniciar a tramitação de um projeto de lei em 15 dias.