Município pretende fazer parceria público-privada para cuidar do esgoto das regiões de Barra, Recreio e Jacarepaguá. Cedae diz que descumprimento de contrato afronta a lei

Por Elis Bartonelli – O Globo

26/07/2018 4:30

RIO – Do esgoto, a maioria quer se manter bem longe. Mas, no Rio, virou motivo de uma guerra iniciada esta semana entre a prefeitura e a Cedae. Logo que o município anunciou que pretende levar adiante a ideia de uma parceria público-privada (PPP) para cuidar do saneamento da região de Barra, Recreio e Jacarepaguá — a Área de Planejamento 4 (AP-4), que abrange 19 bairros da Zona Oeste —, a companhia estadual, responsável pelo serviço atualmente, abriu fogo contra a proposta. Em jogo, estão uma clientela de alto poder aquisitivo e uma região com belas paisagens, mas que tem lagoas e rios tomados pela poluição. A Cedae informou que 70% do esgoto da área são coletados, mas o percentual não inclui 117 favelas, onde a responsabilidade pelo saneamento já é da prefeitura.

A Cedae alega que tem um contrato firmado com o município, renovado em 2007 e com validade até 2057, para o fornecimento de água potável e a coleta e o tratamento de esgoto na região. A concessão da AP-4 à iniciativa privada, afirma a companhia, fere esse acordo, afronta a Lei 11.445/07, que regula o saneamento no país, e também contraria a Medida Provisória 844, que atribuiu a execução dos serviços de saneamento da Região Metropolitana a um colegiado, não cabendo ao prefeito do Rio responder pelo grupo. A prefeitura, por sua vez, ao confirmar o lançamento da PPP, na última segunda-feira, argumenta que a medida resolveria um “grave problema ambiental na região por um custo menor”.

O município informou que uma comissão formada por técnicos da Subsecretaria de Projetos Estratégicos e da Fundação Rio Águas tem um prazo de dez dias úteis para analisar e atualizar o trabalho das empresas Aegea Saneamento e Participações e Saneamento Ambiental Águas do Brasil S.A, que, em 2015, elaboraram estudos relativos à coleta e ao tratamento de esgoto na Barra e no seu entorno. Depois que o grupo criado esta semana pelo prefeito Marcelo Crivella avaliar esses documentos, serão realizadas audiências públicas sobre o projeto, para então ser lançado um edital para a formação da PPP.

A Cedae, porém, já avisou que notificará a prefeitura do Rio, a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio (Agenersa), o Ministério Público estadual e os tribunais de Contas do Estado e do Município a respeito da proposta. Em nota, a companhia informou que os planos de Crivella “causam estranheza”, uma vez que a Cedae está pleiteando junto ao Ministério das Cidades R$ 2 bilhões para aplicar em saneamento. Desse total, R$ 1,3 bilhão seria destinado a obras de esgotamento sanitário no município.

O processo de aprovação dessa verba, no entanto, depende de uma assinatura de Crivella. Segundo a Cedae, esse documento está nas mãos do prefeito há dois meses e ainda não retornou à empresa. Para pôr mais lenha nessa fogueira, a companhia é hoje o principal ativo do estado em troca do socorro financeiro previsto no Regime de Recuperação Fiscal da União. A venda da empresa foi dada como garantia para que o governo recebesse R$ 3,5 bilhões em empréstimos. Em relação ao impacto que a perda da gestão dos serviços da AP-4 nesse processo, no entanto, a empresa limitou-se a dizer que a modelagem da venda está sendo executada dentro do cronograma. A Cedae tampouco detalhou quanto a região representa em seu faturamento ou o total de clientes.

Já a prefeitura afirmou que só vai se posicionar quando a comissão finalizar a análise. O fato é que, hoje, a precariedade ainda é grande. De acordo com o biólogo Mário Moscatelli, mesmo com os recentes investimentos, o saneamento na região está anos luz distante do que a legislação determina. Ele explica que os rios Arroio-Pavuna, Pavuninha, Arroio Fundo, Canal do Anil, Rio das Pedras, Cachoeira e Itanhangá, que deságuam nas lagoas da Barra e de Jacarepaguá, recebem esgoto de áreas de crescimento urbano desordenado ou que simplesmente não têm sistema de saneamento.

— A lei diz que não se pode jogar esgoto sem tratamento em rios, lagoas e mar. Olhando para a Baixada de Jacarepaguá, eu posso dizer que os rios que chegam às lagoas podem ser considerados mortos. Aquilo é uma imensa vala de esgoto — pontua ele.

Moscatelli destaca que a falta de saneamento prejudica o meio ambiente, a saúde pública e até a economia, uma vez que, se estivessem em boas condições, as lagoas poderiam ser aproveitadas com atividades de turismo e lazer, gerando emprego, renda e impostos para o município. O biólogo vê com bons olhos a iniciativa da prefeitura, mas ressalta que a administração precisa impor medidas eficazes.

— Sem ordenação do uso do solo e políticas habitacionais que evitem o crescimento urbano desordenado, vamos ficar secando gelo — afirma.

PESQUISADOR VÊ VANTAGEM EM PPP

Pesquisador do Instituto Trata Brasil, Pedro Scazufca acredita que a PPP pode ser um bom caminho, diante da dificuldade do setor público em alavancar investimentos para o setor:

— A vantagem da iniciativa privada é que, além de uma maior facilidade em captar recursos, você passa a ter um contrato com metas preestabelecidas e é possível acompanhar como o projeto está sendo desenvolvido. Mas é importante que tenha um bom contrato, que garanta a universalização do serviço.

Presidente da Associação de Moradores do Condomínio Parque das Rosas, na Barra, CleoPagliosa reconhece os avanços feitos pela Cedae no bairro. No entanto, a falta de saneamento nas favelas da região é um problema:

— Nosso problema é o esgoto que vem de Rio das Pedras e chega à Lagoa de Marapendi. O mau cheio é insuportável. A região da Barra é muito bonita e poderia ser bem aproveitada para o turismo. Se não tomarmos atitude agora, daqui a dez anos, as lagoas terão desaparecido.

Desde 2011, a Cedae investiu cerca de R$ 1,7 bilhão na AP-4. Foram construídos, por exemplo, 19 elevatórias, a Estação de Tratamento da Barra e o emissário submarino.

OUTRA PRIVATIZAÇÃO: SERVIÇO SEM RECURSO PÚBLICO

No Rio, a privatização do serviço de saneamento não é uma novidade. Desde 2012, a coleta e o tratamento de esgoto da Área de Planejamento 5 (AP-5), que reúne outros 22 bairros da Zona Oeste, como Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, estão sob a responsabilidade da empresa Zona Oeste Mais Saneamento, que tem como acionistas o grupo Águas do Brasil e a BRK Ambiental. O processo de concessão foi garantido em 2007, quando, na renovação do contrato da prefeitura com a Cedae, essa região foi excluída do documento.

Segundo o presidente da concessionária, Sinval Andrade, a receita média mensal da empresa é de R$ 20 milhões. Descontando a inadimplência, a arrecadação é de R$ 15,6 milhões. A prefeitura recebe de outorga 4% do valor bruto.

— Quando iniciamos, a região tinha menos de 5% de esgoto tratados. Hoje, atingimos 35% da população da AP-5, onde vive 1,8 milhão de pessoas. Investimos aqui R$ 465 milhões, tudo em recursos privados. Não temos dinheiro público na concessão.

NÚMEROS DO SISTEMA DE TRATAMENTO E COLETA:

90%

Dados de 2016 mostravam que 90% dos moradores da Barra já contavam com a coleta de esgoto, mas em toda a região menos de 50% eram tratados.

44,5%

Percentual de esgoto tratado na cidade do Rio, de acordo com o Instituto Trata Brasil. No município de São Paulo, o índice chega a 61,9%.

39ª

Posição do Rio no ranking do saneamento básico de 2018 do Trata Brasil, que considera indicadores das cem maiores cidades do país.

33,5%

Índice de esgoto tratado no Estado do Rio, de acordo com o último diagnóstico do Sistema Nacional de Informações de Saneamento do governo federal.

26%

Quanto caiu o lucro líquido da Cedae em 2017 em relação ao ano anterior, segundo balanço divulgado pela companhia. O valor foi de R$ 279 milhões

Colaboraram Giselle Ouchana e Rafael Galdo