Por Fernando Vernalha e Angelica Petian – Valor Econômico

23/07/2018 – 05:00

A recente Medida Provisória nº 844 trouxe relevantes atualizações no marco legal do saneamento no país. Uma nova legislação já vinha sendo demandada por especialistas do setor. Disputas em torno da titularidade do serviço e o diagnóstico sobre a falta de capacidade institucional dos entes locais e regionais em regulá-lo adequadamente eram reconhecidos entraves ao desenvolvimento do saneamento. Além disso, a discussão sobre a agenda de privatização de companhias estaduais de saneamento chamou a atenção para a obsolescência do regime legal, que impedia a manutenção dos contratos de programa firmados com os municípios em caso de venda do controle acionário das companhias. Todas essas questões foram objeto da MP 844/2018, que impõe alterações nas leis 9.984/00 e 11.445/07.

Uma primeira inovação marcante é a ampliação das competências da Agência Nacional de Águas (ANA), que passará a atuar como uma agência reguladora para todo o setor de saneamento. A Agência foi encarregada não apenas de prover normas nacionais sobre diversos assuntos importantes relacionados à prestação do serviço de saneamento, como o de mediar e arbitrar conflitos entre os entes federados, suas agências e entidades e o de contribuir para a articulação entre o Plano Nacional de Saneamento Básico, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos e a Política Nacional de Recursos Hídricos.

Embora os entes locais possam não estar obrigados em muitos casos a cumprir essa regulação, o acesso a recursos federais para o saneamento dependerá do atendimento a essas normas de referência.

Até então, a regulação mais especifica do setor ficava à conta de agências estaduais, municipais ou intermunicipais, cuja regulação diversificada impunha desafios aos grandes prestadores, como as companhias estaduais. A concentração dessas competências numa agência federal como a ANA pode funcionar bem para melhorar a abrangência, a qualidade e a uniformidade da regulação, sem que se elimine a atuação residual das demais agências. Isso concorrerá para melhorar a segurança jurídica e o ambiente para investimentos no setor.

A titularidade municipal (e do Distrito Federal) dos serviços de saneamento também foi confirmada pela MP, conforme interpretação já anteriormente professada pelo STF. Para o caso de regiões metropolitanas, a MP incorpora à Lei nº 11.445/2007 as recentes alterações feitas no Estatuto da Metrópole, atribuindo o exercício da titularidade dos serviços nas regiões metropolitanas ao colegiado interfederativo. Nos demais casos de interesse comum, o exercício da titularidade se mantém por meio de consórcios públicos ou convênios de cooperação.

Ainda que o problema da titularidade dos municípios sobre o saneamento venha sendo tratado como uma questão constitucional, a verdade é que essa não é a melhor opção para o desenvolvimento e a universalização do setor. Não só porque o saneamento não é um serviço a ser pensado e planejado localmente, pois sua implementação traz uma série de implicações regionais e até nacionais, mas pela reconhecida incapacidade técnica e institucional dos municípios em administra-lo adequadamente. Espera-se que a intensificação da regulação federal, a partir da atuação da ANA, possa ajudar a melhorar esse quadro.

Com o objetivo de estimular a competitividade no setor de saneamento, a nova legislação também inova ao impor aos municípios interessados em contratar diretamente as empresas estaduais a obrigação de consulta prévia ao mercado. A contratação direta da empresa estatal só será viável após a constatação da inexistência de propostas da iniciativa privada em operar o serviço em condições mais econômicas, a partir da realização de procedimento de manifestação de interesse (PMI). Do contrário, o município será obrigado a licitar. A sistemática contribuirá para ampliar a participação privada no setor, o que deve favorecer em muitos casos melhores condições e tarifas para os usuários. Mas impõe uma dificuldade em planejar o saneamento de modo regionalizado, inviabilizando subsídios cruzados entre os projetos, o que pode prejudicar políticas de universalização.

Outra contribuição relevante da MP foi harmonizar a disciplina dos contratos de programa com as hipóteses de privatização das companhias estaduais de saneamento. A nova legislação excepciona a hipótese de privatização do alcance da regra do art. 13, §6º da Lei federal nº 11.107/2005, que impõe a extinção dos contratos de programa quando o ente signatário deixar de pertencer à estrutura da Administração. Até a vigência da MP, os casos de privatização, com a venda do controle acionário das empresas estatais, acabavam gerando o fim dos contratos de programa. Com a redação dada pela MP, a Lei 11.107/2005 passa a afastar a hipótese de extinção do contrato de programa nos casos de privatização da estatal, preservando-o desde que haja anuência do ente titular do serviço às novas condições de prestação. Isso contribuirá para viabilizar a privatização de empresas estaduais que atuam no saneamento, oferecendo maior segurança jurídica a esses programas.

Esses são, enfim, alguns dos principais temas tratados pela MP 844/2018, cuja regulamentação pretende contribuir para melhorar a segurança jurídica e a qualidade da regulação do setor. Seu advento parece bem-vindo em muitos aspectos.

Resta saber se o novo marco conseguirá criar as condições necessárias para que governos e mercados avancem na difícil agenda da universalização do saneamento no Brasil.

Fernando Vernalha e Angelica Petian são sócios do VG&P Advogados e, respectivamente, pós-doutor em Direito (Columbia Law School) e professor convidado da FGV-RJ; doutora em Direito (PUC-SP) e professora da Escola Paulista de Direito

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