Estadão
28/09/2020

Por Humberto Dantas

Erick Elysio Reis Amorim é mestre em economia do setor público pela UnB e doutorando em administração na FGV/EBAPE. Possui MBA em concessões e PPPs pela FESPSP/LSE. Ele também é líder MLG, pelo Master em Liderança e Gestão Pública. Com mais de 15 anos de experiência em regulação, concessões, saneamento, finanças públicas e planejamento urbano, Erick é servidor federal concursado licenciado e atualmente é diretor de Assuntos Federativos e Internacionais da Prefeitura de Teresina.

No texto, o líder MLG fala sobre a necessidade de pensar em soluções de longo prazo para financiamento dos setores de limpeza urbana e drenagem.

Devido aos profundos e transformadores efeitos que a pandemia do coronavírus trouxe para nossa sociedade, o ano de 2020 está sendo considerado, por muitos, como o início efetivo do século XXI. Os efeitos na economia, as perdas de vidas que poderiam ter sido evitadas por meio de políticas públicas coordenadas, ainda serão objeto de estudo e debate por um bom tempo.

Ao mesmo tempo que estamos entrando de fato no século XXI, há vários problemas do século passado que ainda não foram resolvidos na maioria dos países em desenvolvimento. No Brasil, especificamente, temos a vergonhosa situação do saneamento básico em seus quatro eixos: água, esgoto, resíduos sólidos e drenagem urbana. Em janeiro deste ano, neste mesmo espaço, abordei os desafios da drenagem urbana no contexto das notícias de sempre: ruas alagadas, casas destruídas, encostas deslizando e enchentes tirando vidas e acumulando prejuízos. No âmbito dos resíduos sólidos é também preocupante a situação da nossa baixa taxa de coleta seletiva, onde apenas 38,1% das cidades possuem alguma ação de coleta seletiva, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Há também o problema dos lixões, temos 1037 unidades (2018), que causam degradação ambiental e social nos diversos municípios do país.

Soluções duradouras e, preferencialmente, sustentáveis custam dinheiro. Não há como negar este fato. Outra circunstância que também incontestável é a frágil situação econômica que o Brasil apresenta e, em especial, as suas finanças públicas, diminuindo consideravelmente a capacidade de investimento do Estado no curto prazo. Em julho deste ano foi sancionada, com vetos polêmicos, a nova lei do saneamento básico, que traz algumas inovações que podem, se superados as inconsistências jurídicas, dar um ritmo maior nos investimentos necessários para os setores de água e esgoto, especialmente por meios de concessões e PPPs.

Na legislação federal, o executivo e os congressistas já incluíram várias metas e datas para solucionar as questões dos lixões determinando que os municípios eliminem esse tipo de disposição final. É tentador ,claro, mas nossos representantes deveriam saber que o papel de uma lei pode aceitar tudo, inclusive, metas arrojadas e datas inexequíveis. Nos últimos anos o prazo mudou de 2014 para 2019 e agora está em 2022. Sem financiamento e incentivos corretos, há possibilidade de nova alteração legislativa para prorrogar novamente o prazo.

Ao contrário de abastecimento de água e esgotamento sanitário, os setores de limpeza urbana e drenagem carecem de fontes de financiamento estáveis e seguras para esse tipo de contrato em parceria com privado. Isto decorre por que esses tipos de serviços são, como chamamos nos jargões econômicos, definidos como um bem público tradicional: indivisível, não rival e que satisfaz necessidades coletivas. Dessa forma, a implementação de uma taxa para financiar esses serviços é juridicamente questionável. Como exemplo vide o caso de Joinville, em Santa Catarina, que está há mais de 10 anos em debate no STF e ainda sem solução definitiva. De uma certa forma, esses serviços são como “patinhos feios” do setor, em especial a drenagem. Como exemplo, transcrevendo os discursos feitos nos 25 vídeos mais assistidos sobre o novo marco do saneamento, 80% das menções são aos setores de água e esgoto, pouco se debateu sobre os de resíduos e, menos ainda, de drenagem.

Uma inspiração para resolver este setor seria de um outro serviço que também tem as mesmas características de ser indivisível e que satisfaz uma necessidade coletiva: o da iluminação pública. Nos últimos anos, foram assinadas 17 PPPs, mais 279 estão em processo e devem gerar investimentos na ordem de R$ 30 bilhões nos próximos anos, trazendo tecnologia e sustentabilidade e, o mais importante: uma melhor prestação do serviço público sem, necessariamente, provocar um aumento de custo ao cidadão. Isto só foi possível uma vez que existe, desde 2002, uma contribuição constitucional para iluminação pública, instituída pela Emenda Constitucional nº 29.

Minha percepção é que se quisermos realmente resolver o problema da qualidade e regularidade da limpeza urbana e da drenagem, incluindo todas as complexidades do setor, e atraindo a parceria e recursos do setor privado, devemos abordar uma solução semelhante à que foi dada a iluminação pública: a criação de uma contribuição constitucional para serviços não divisíveis do saneamento. Com essa inovação institucional será possível promover contratos de longo prazo com metas de qualidade e segurança jurídica.

Geralmente quando esse assunto é debatido sempre há o argumento que o IPTU já é um imposto que deveria cobrir esse tipo de serviço, comumente chamado de “zeladoria “. Na realidade, se for olhado apenas os gastos com serviço de resíduos sólidos e limpeza urbana, a estimativa, é que foi efetivamente despendido cerca de R$ 22 bilhões em 2018 (fonte SNIS), enquanto arrecadação de IPTU nacionalmente não chegou a R$ 40 bilhões em 2017, valor claramente insuficiente frente à todas outras demandas de uma cidade. Ademais, é um dos setores com maior inadimplência entre os municípios, cerca de 11,6 bi em 2018, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais.

É importante que o debate atual da reforma tributária também aborde este aspecto que tanto demanda as prefeituras, sendo o núcleo central da atuação de uma boa governança municipal, ao lado de educação, saúde e assistência social. A necessária pactuação dos recursos e responsabilidades entre os entes federativos é algo que não pode esperar e que deveria ser objeto de discussão no Congresso este ano e aprovação no próximo, já com os novos prefeitos eleitos em 2020. Por fim, não é o âmbito deste artigo, mas é sempre bom ressaltar que é impossível tratar de reforma tributária sem discutir propriamente a progressividade da tributação sobre a renda e do patrimônio das pessoas e empresas. Todo gestor e agente público deve seguir sempre o mesmo objetivo: trazer mais serviços públicos de qualidade ao menor custo possível para o cidadão e que esse custo seja distribuído da forma mais justa o possível.