Valor Econômico
16/12/2019

O novo marco do saneamento é um avanço, mas fica a sensação de que algo bem melhor ainda pode sair das discussões

A aprovação do novo marco legal do saneamento na Câmara dos Deputados, semana passada, representa um avanço relevante no esforço de tirar o Brasil do fiasco sanitário em que se encontra. No entanto, devido a manobras de última hora para conciliar posições quase antagônicas, a modernização ficou aquém das necessidades e o projeto merece aperfeiçoamentos na sequência de sua tramitação no Senado. Só parece difícil que isso possa, de fato, ocorrer.

Registre-se que duas medidas provisórias editadas pelo ex-presidente Michel Temer – a segunda publicada a cinco dias de ele deixar o Palácio do Planalto e posteriormente abraçada pelo governo Jair Bolsonaro – perderam validade sem terem sido votadas no Congresso. Todas as tentativas de levar adiante mudanças no marco regulatório esbarraram na oposição, principalmente, dos governadores do Nordeste, com o notável reforço de Ronaldo Caiado (DEM) em Goiás.

No centro da polêmica estão os contratos de programa, normalmente assinados de forma direta entre prefeituras e companhias estaduais de água e esgoto, que dariam lugar aos contratos de concessão, com exigência de concorrência pública e aberta à participação de empresas privadas. Os críticos veem dois riscos: perda de competitividade das estatais de saneamento e municípios pequenos condenados à falta de serviços, já que o mercado só teria interesse nas grandes cidades. Resultado inevitável, segundo os mais estridentes, seria a “privatização da água”.

Balela. Inicialmente, deve-se esclarecer que as empresas (públicas ou privadas) não vendem água em si, mas um serviço digno de remuneração: transformar água bruta em potável, dejetos em esgoto tratado. Não se encontra a palavra “privatização” ou termos congêneres em nenhum dos 22 artigos do projeto recém-aprovado. Apenas a obrigação de concorrência e a vitória do certame por quem oferecer o melhor custo-benefício. Se for uma empresa privada, muito bem-vinda.

Nada indica que o modelo adotado até agora, focado nas estatais, tenha a capacidade de atacar o déficit gigantesco em saneamento. O Brasil investe, na média, cerca de metade dos R$ 21,6 bilhões anuais necessários para a universalização dos serviços até 2033. No ritmo atual, abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto só chegariam a toda a população em 2065. Falta levar esses serviços a um contingente de 99 milhões de brasileiros.

Atribuir o risco de quebra das companhias estaduais à maior participação privada não parece adequado. As primeiras têm despesa média anual por empregado (salários, encargos, benefícios) de R$ 142 mil por ano e gastam 51,5% de suas receitas com folha de pagamento – enquanto esses valores são, respectivamente, de R$ 56 mil por ano e 22,1% nas empresas privadas. As estatais têm carregado um peso impeditivo à melhoria e à expansão de suas redes. Algumas ostentam indicadores vergonhosos de coleta de esgoto, como no Pará (6,3%) e em Rondônia (4,5%).

Portanto, não procede o receio de que localidades de menor porte poderão ficar sem saneamento – elas já estão e, com o marco ainda em vigência, não têm perspectiva de sair desse cenário medieval. Como forma de aliviar a falta de atratividade econômica dos pequenos, o novo marco prevê a formação de blocos de municípios. Juntando “filé” e “osso”,torna-se possível usar regiões metropolitanas na estruturação de lotes financeiramente viáveis para potenciais investidores.

Não se pode dizer que estatais são sempre ineficientes. Por isso, a versão do projeto de lei aprovada em comissão especial da Câmara incluiu um dispositivo: as companhias poderiam estender, por no máximo cinco anos ou até 2033, seus contratos de programa. Desde que já levassem água a 90% dos habitantes e atendessem a pelo menos 60% com coleta e tratamento de esgoto.

Para viabilizar um acordo entre União e governadores na votação em plenário da Câmara, foi permitido que esses contratos agora sejam prorrogados mais 30 anos. Não é um cheque em branco. Todos os contratos precisarão ter metas de universalização – 2033 ou, quando não houver viabilidade, até 2040. Seu descumprimento em três anos de um mesmo quinquênio implica abertura de processo administrativo e eventual perda do contrato.

É uma transição excessivamente suave. Ideal seria retornar à versão anterior. Mas, considerando o peso maior da bancada nordestina no Senado, essa mudança parece pouco provável. O novo marco do saneamento é um avanço, mas fica a sensação de que algo bem melhor ainda pode sair das discussões.