Valor Econômico
22/07/2020

Por Sebastião Tojal e Felipe Spinardi

Considerando a necessidade de uma profunda reforma regulatória, nota-se que a tarefa da ANA é complicadíssima

O enorme atraso no setor de saneamento básico no Brasil não é novidade para ninguém. Os números impressionam e mais, estarrecem. Em pleno século 21, são aproximadamente cem milhões de brasileiros vivendo sem coleta de esgoto e 35 milhões, sem água tratada.

Não à toa, o tema já foi objeto de duas medidas provisórias, as quais, apesar de contemplarem mudanças significativas para o setor, não foram convertidas em lei.

Considerando a necessidade de uma profunda reforma regulatória, nota-se que a tarefa da ANA é complicadíssima

Com a aprovação pelo Senado Federal, no último dia 24, do texto que atualiza o marco legal do saneamento básico, viu-se uma “enxurrada” de artigos, entrevistas e comentários na mídia a respeito do tema. Quase todos se mostraram muito otimistas em relação ao novo marco legal.

Grande parte desse otimismo deve-se à tentativa de solução daquele que constantemente é apontado como o maior dos desincentivos para os investimentos privados no setor: a pulverização de normas regulatórias. São mais de 50 agências reguladoras responsáveis pela matéria no país, com regramentos próprios, muitas vezes substancialmente divergentes, o que reduz a previsibilidade e aumenta os custos de transação para os interessados no setor.

O Projeto de Lei nº 4.162/2019 endereça a solução do problema à Agência Nacional de Águas (ANA), a qual ficará incumbida de estabelecer normas de referência sobre: padrões de qualidade e eficiência na prestação dos serviços, tarifas, padronização dos contratos, metas de universalização dos serviços, governança das entidades reguladoras, critérios contábeis, metodologia indenizatória de investimentos, entre outros temas. Referidas normas deverão ser observadas pelos órgãos e instituições subnacionais reguladores ou titulares dos serviços.

A ideia é criar uma considerável uniformidade regulatória, e, concomitantemente, conferir margem para que as administrações públicas locais e regionais também possam normatizar tais serviços, levando em consideração as especificidades das respectivas localidades.

A ANA, apesar de nunca ter atuado no setor, constituiu, em fevereiro de 2019, um grupo de trabalho destinado especificamente ao estudo da matéria. Isso porque a última das mencionadas medidas provisórias (nº 868/2018) já pretendia lhe conferir essas atribuições. Mesmo assim, os desafios da agência não serão pequenos. O setor é dotado de diversas peculiaridades, como as disparidades regionais, a indispensabilidade do controle social para a garantia da qualidade dos serviços, a – em regra – elevada necessidade de investimentos na fase inicial dos contratos etc.

Considerando a necessidade de uma profunda reforma regulatória, bem como as especificidades do setor de saneamento básico, nota-se que a tarefa da ANA é, na realidade, complicadíssima.

E é nesse cenário que ganha importância a Análise de Impacto Regulatório (AIR), instrumento cuja regulamentação foi feita pelo Decreto nº 10.411/2020, editado no último dia 30 pelo governo federal.

A AIR não é novidade no Brasil. Porém, no último ano, o instrumento ganhou força na legislação federal. Sua obrigatoriedade em diversas situações foi prevista expressamente na Lei nº 13.848/2019, a Lei das Agências Reguladoras, e na Lei nº 13.874/2019, a Lei de Liberdade Econômica.

Como o próprio nome diz, trata-se de procedimento que visa à análise prévia dos reflexos que a implementação de determinada medida regulatória ocasionará. Dessa forma, a AIR privilegia a funcionalidade da ação regulatória e contribui para a transparência e a eficiência na administração pública. Para tanto, o instrumento pressupõe a realização de estudos que demonstrem os custos diretos e indiretos da pretensa medida, a sua razoabilidade, as suas vantagens e, ainda, as razões pelas quais as demais medidas passíveis de adoção não serão escolhidas.

No caso da ANA, a AIR, somada à participação da sociedade civil e dos players setoriais, será fundamental para o sucesso da elaboração das normas referenciais para os serviços de saneamento básico que permitam efetivamente zerar o déficit hoje presente mediante o atendimento pleno aos usuários.

Desse modo, pode-se depreender que caberá à ANA o protagonismo em relação à regulação do setor de saneamento básico.

Todavia, uma vez munida de instrumentos adequados, capazes de conferir transparência ao processo normativo, permitir a participação da sociedade civil e dos integrantes do setor e viabilizar uma análise criteriosa das opções regulatórias disponíveis, crê-se que a reforma pretendida pelo novo marco legal pode ser muito bem-sucedida, atraindo os tão desejados investimentos para, ao final, lograr disponibilizar um serviço efetivamente universal, que atenda a todos os brasileiros.

Sebastião Tojal e Felipe Spinardi são respectivamente, doutor em Direito do Estado, professor da Faculdade de Direito da USP; mestrando em Direito Público, especialista em Direito Administrativo, ambos pela FGV Direito SP. Sócio e advogado de Tojal Renault

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