Parametrização centralizada no âmbito federal não necessariamente tornaria o processo mais eficiente

Adriano Pires – Publicado no Jornal O Globo

09/05/2019 – 00:00

Desde a antiguidade existe preocupação com o saneamento básico. Seja através de aquedutos romanos, construção de diques e galerias de esgoto, buscou-se preservar a saúde da população e garantir o abastecimento de água para consumo e irrigação. No Brasil, as primeiras iniciativas remontam a 1561.

De acordo com o Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS), dados de 2017, 83,5% da população brasileira tinham acesso à água tratada, 52,4% tinham acesso à coleta de esgoto, e apenas 46% dos esgotos do país são tratados. O volume médio de perdas ainda se encontra em 38,3%.

As condições que não permitiram o desenvolvimento pleno do saneamento básico no país continuam presentes: volume incipiente de investimentos, ausência de planejamento adequado, experiências malsucedidas de gestão e dificuldade para obter financiamentos e licenças para obras. Destas, somente a última apresentou alguma evolução desde o Plano Nacional de Saneamento de 1971.

Dentre as dificuldades de planejamento, destaca-se o fato de que a titularidade dos serviços, conforme lei 11.445/07, é dos municípios. Logo, criar arcabouço regulatório, planos de saneamento e licitar concessões é uma tarefa hercúlea para a gama de 5.570 municípios existentes. O problema é grande; o diagnóstico, antigo. Mas pouco se avançou desde a criação do marco regulatório. Apresento possíveis soluções para contribuir com o debate.

Em primeiro lugar, é preciso que a reflexão sobre o marco regulatório ocorra previamente. As duas medidas provisórias de 2018 e 2019 (844 e 868) tiveram vício de origem, pois não foram fruto de uma discussão prévia com os principais agentes setoriais. Se empresas dos estados de SP, MG e PR foram responsáveis por 45% dos investimentos em saneamento no país em 2017 e 65%, ao somarmos as privadas, uma reflexão deveria partir delas, juntamente com a sociedade civil e associações.

A experiência do setor elétrico quando da criação do Novo Modelo é um exemplo a ser lembrado. Houve praticamente um ano de discussões prévias com ampla adesão que culminaram com as MPs 144 e 145 de outubro de 2003. De exemplo negativo temos a MP 579/12, cuja discussão prévia foi curta e circunscrita a agentes de mercado, em sua maioria eletrointensivos, e, portanto, interessados em redução de tarifas. O barato saiu caro, e a redução de 18% em 2013 foi sucedida por aumentos tarifários 41% acima da inflação de 2014 a 2018.

A solução proposta é a simplificação dos processos e a não concentração de responsabilidade na Agência Nacional de Águas (ANA) ou a criação de arcabouço regulatório e plano de saneamento federais.

A Associação Internacional da Água disponibiliza a Carta de Lisboa, documento que procurou criar princípios básicos de boas práticas de políticas públicas e de regulação para o serviço de saneamento, bem como evidenciar direitos, deveres e responsabilidades de cada stakeholder. Logo, referências de boas práticas de regulação já existem e não precisam ser recriadas.

Em segundo lugar, deve-se repensar a proposta de se criar um plano de saneamento nacional como norte para planos municipais. Essa abordagem centralizada pode desconsiderar aspectos locais como características socioeconômicas do consumidor, estrutura dos ativos, distância a fontes de captação de água, topografia, restrições ambientais, entre outros. Enfim, não necessariamente uma parametrização centralizada no âmbito federal tornaria o processo mais eficiente ou atinente às características locais.

Em terceiro lugar, por que não permitir que cada município baseie seu arcabouço regulatório em melhores práticas existentes e regras simplificadas de atualização de tarifas, qualidade e metas de cobertura dos serviços, além de penalidades claras e objetivas pelo não cumprimento destas?

Em quarto lugar, a criação de uma cartilha de regras de licitação para auxiliar municípios seria um começo. Os dois outros pilares, regulação e plano de saneamento, poderiam ser disponibilizados por instituições independentes. Dessa forma, o processo seria parametrizado de maneira simples, descentralizada e com custo baixo.

Investir em saneamento é processo civilizatório. Não há necessidade de se trazer complexidades, quando regras e melhores práticas já existem e podem nortear prefeituras a melhorar a condição de vida de seus habitantes sem uma mão visível da União.

Adriano Pires é diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura