Por Eli Loria e Daniel Kalansky – Valor Econômico

01/03/2018 – 05:00

Com a promulgação da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais), tornou-se importante refletir a respeito de dois aspectos que – se bem ponderados – farão com que a referida lei possa efetivamente melhorar a administração e governança das empresas públicas, de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito do poder Executivo nos três níveis de governo.

A primeira reflexão consiste em saber se a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pode supervisionar o cumprimento da referida lei no que diz respeito às normas societárias. A CVM é competente para fiscalizar o cumprimento da Lei das Estatais pelas companhias abertas sujeitas a ela?

A resposta não é trivial, uma vez que a Lei das Estatais não estabelece a competência da CVM para fiscalizar a sua aplicação e também pelo fato de poder se argumentar que as regras da Lei das Estatais não objetivam regular o mercado de capitais.

Fazendo uma leitura minuciosa da Lei das Estatais percebe-se, entretanto, que diversas matérias são de ordem societária, como, por exemplo, as vedações estabelecidas no artigo 17, §2, para ocupação de cargos de diretoria e conselho de administração, mitigando indicações político-partidárias, bem como o artigo 10, que exigiu a criação de comitê estatutário para verificar a conformidade de processo de indicação e avaliação dos administradores.

Em nossa visão, não há dúvida de que a CVM é competente para fiscalizar o cumprimento das normas societárias previstas na Lei das Estatais, inclusive tendo em vista o teor da regra estabelecida no art. 147, §1º º, da Lei nº 6.404/1976, que estabelece “são inelegíveis para os cargos de administração da companhia pessoas impedidas por lei especial”. Certamente, tal fiscalização terá o efeito positivo de proteger os investidores para a correta aplicação dos princípios inseridos na Lei das Estatais, permitindo o alcance do objetivo de sua edição.

A segunda reflexão consiste em entender como a CVM deve interpretar da Lei das Estatais. Melhor buscar uma interpretação literal e restritiva, ou buscar aplicação da lei em vista do objetivo de sua promulgação?

Ao interpretar a lei deve-se buscar o seu objetivo, de forma a diminuir a influência política sobre as estatais

Para responder ao questionamento é importante percorrer dois casos julgados pela CVM. O primeiro deles tratava da extensão da regra do artigo 17, §2º, da Lei das Estatais, referente aos requisitos de elegibilidade para eleição de administradores, por empresa não sujeita ao regime da Lei das Estatais, porém controlada por sociedade de economia mista. (Processo CVM Nº 19957.008923/2016-12 – Caso Light). Nesse caso, o Colegiado da CVM deliberou, por unanimidade, declarar a ilegalidade da proposta formulada pela administração da companhia com relação à indicação, para composição do Conselho de Administração da companhia, de uma pessoa que havia atuado na realização da campanha eleitoral que culminou com a eleição da ex-presidente Dilma Rousseff.

A CVM fugiu, assim, de uma interpretação restritiva da lei, trazendo à tona os objetivos almejados pelo legislador, por meio da aplicação da interpretação teleológica.

Já o segundo caso, bem recente (julgado em 05 de janeiro de 2018 – Processo CVM Nº 19957.011269/2017-05 – Caso Copel), tratava da eleição em Assembleia Geral Extraordinária de membros de Comitê Estatutário responsável por verificar a conformidade do processo de indicação e de avaliação de membros para o Conselho de Administração e para o Conselho Fiscal (Comitê de Indicação e Avaliação). Ao verificar a proposta da administração, percebeu-se que os candidatos indicados pelo acionista controlador ao Comitê de Indicação e Avaliação se enquadravam nas vedações para ocupar os cargos de administradores de empresas estatais, por força do artigo 17, §2 da Lei das Estatais.

Como se pode notar da leitura da Lei das Estatais, não há vedações especificas para a eleição de membros do Comitê de Indicação e Avaliação exigido pelo artigo 10 da mesma Lei. As vedações estabelecidas pelo art. 17, §2, são expressamente aplicáveis apenas aos membros do Conselho de Administração e Diretoria.

Pergunta-se: se a Lei das Estatais não permite que determinadas pessoas sejam administradores, porque deixaria que as mesmas pessoas possam integrar um Comitê que irá justamente se envolver na indicação e avaliação dos administradores?

Devemos, neste caso, privilegiar a interpretação literal, entendendo que, se o artigo 17, §2 somente tratou das vedações aos administradores, sua extensão aos membros do Comitê de Indicação e Avaliação seria uma restrição de direitos não prevista em lei?

Ao interpretar a Lei das Estatais, deve-se buscar o seu objetivo, de forma a diminuir a influência política sobre as estatais, principalmente por meio de requisitos de elegibilidade para a designação de seus dirigentes. Deve-se perseguir a finalidade da Lei das Estatais, utilizando-se, para tanto, da interpretação teleológica e sistemática. Neste sentido, caminhou bem a CVM ao se intitular competente para fiscalizar o cumprimento da Lei das Estatais, bem como por priorizar nos julgamentos dos casos acima mencionados uma interpretação que atenda aos objetivos da Lei, pois, somente dessa forma, os investidores poderão confiar que a gestão e a governança das empresas públicas e de economia mista estão em processo de aprimoramento em nosso país.

Eli Loria, sócio da Loria e Kalansky Advogados, foi diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Daniel Kalansky é professor do Insper e sócio da Loria e Kalansky Advogados