Valor Econômico
26/12/2019

Por André Mizutani

Para Wolf, mundo se tornou muito dependente do crédito

Com o consumo cada vez mais dependente de políticas monetárias acomodatícias de bancos centrais, a economia global não terá como sair do cenário atual, de estagnação secular, sem uma mudança significativa nas estruturas fiscal e de distribuição de renda dos países desenvolvidos. Esta é a opinião do comentarista-chefe de economia do “Financial Times”, Martin Wolf.

“Esse cenário de baixas taxas de juros e estagnação secular que estamos enfrentando – e que foi maquiado até 2007 pelo boom do crédito – é um reflexo, em parte significativa, da tendência de distribuição em uma série de economias bem importantes”, afirmou em entrevista ao Valor.

“Não consigo ver nada que leve as grandes economias a se saírem melhor [em termos de crescimento] no ano que vem”

Wolf defende que a concentração de renda em países como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha é um fator que fragiliza fundamentalmente o consumo, aliado a outras questões como o envelhecimento da população nas economias centrais.

Ele não vê, entretanto, uma movimentação significativa nesta direção e, por esse motivo, acredita que 2020 será um ano não muito diferente do que este: com crescimento fundamentalmente fraco, e juros muito baixos impedindo uma desaceleração maior. Já nos EUA, a força da atividade, como a vista em 2019, continuará calcada no consumidor, grande parte responsável pela resiliência da economia do país. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O consumo tem sido o principal ponto forte da economia americana neste ano. O senhor também espera que a força do consumidor nos EUA se sustente em 2020?

Martin Wolf: Existe uma grande questão para as economias em que o endividamento dos consumidores está relativamente alto e o crédito é um contribuinte importante para a disposição das pessoas em consumir. Eu aprendi a nunca subestimar a resiliência do consumidor dos EUA. Mas eu não consigo ver nada que vá torná-lo mais forte. E, é claro, se houver algum choque, há várias possibilidades que poderiam direcionar as pessoas. Algo como um choque nos preços das residências, ou uma alta dos juros, ao invés de uma queda, embora nada disso me pareça muito provável. Então, acredito que poderíamos ver o consumo em desaceleração. Olhando as projeções do FMI [Fundo Monetário Internacional] para o ano que vem, eu percebo que eles acham que haverá uma recuperação modesta em relação aos números de 2019. Eu acho que muito disso se deve à perspectiva de que haverá uma estabilização nos países que tiveram desempenhos especialmente ruins. Eu suspeito que eles estejam sendo um pouco otimistas demais, mas isso é bem consistente com a visão que eu tenho. Mas não há dúvidas de que o consumo em países em que a população tomou muito crédito, como nos EUA e no Reino Unido, está certamente vulnerável a uma piora da confiança e do crédito ao consumidor.

Valor: Um dos artigos que o senhor escreveu nos últimos meses fala do aumento da desigualdade de renda nos EUA e no Reino Unido. O senhor acha que isso teria um efeito negativo sobre os consumidores ou seria um efeito de longo prazo?

Wolf: Eu acho que já teve. Cumulativamente, ao longo dos últimos 15, 20 anos, talvez até antes, um dos motivos para o que chamamos de ‘estagnação secular’ é uma economia em que, sem um crescimento muito rápido do crédito, não há demanda suficiente. E um dos motivos para isso é o fraco crescimento da renda de grande parte da população. A mudança na renda foi mais acentuada nos Estados Unidos, em direção a pessoas que tendem a poupar grande parte da sua renda. E uma mudança também em direção ao capital, e donos de capital também tendem a poupar grande parte dos seus ganhos. Há outros fatores, mas eu acho que este cenário de baixas taxas de juros e estagnação secular que estamos enfrentando – e que foi maquiado até 2007 pelo boom do crédito – é um reflexo, em parte significativa, da tendência de distribuição em uma série de economias bem importantes. Especialmente na Itália e nos Estados Unidos, mas também na Alemanha, onde a demanda das famílias se enfraqueceu e a distribuição de renda piorou. Então eu não acho que isso é um problema de agora, mas um problema que estamos tendo há um bom tempo. E segue.

Valor: Isso seria parte do motivo para sermos tão dependentes da política monetária para impulsionar a economia?

Wolf: Sim. Eu acho que este é, de fato, o ponto crucial. O que eu defendo no meu livro mais recente é que, estruturalmente, nós nos tornamos dependentes do crédito ou dependentes de dívida porque a demanda por produção em nível global ficou relativamente fraca. Nos tornamos muito dependentes da demanda por investimentos e muitas economias se tornaram muito dependentes da demanda por exportação. Antes de 2007, o grande motor de demanda no mundo eram os Estados Unidos e países europeus como Reino Unido, Irlanda, Espanha, além da Europa Oriental Central. Houve um crescimento do crédito muito rápido nessas economias. Isso deu suporte a um enorme investimento em construção residencial e também ao consumo, e essa demanda sustentada nas economias permitiu que a China e a Alemanha gerassem um enorme superávit em conta corrente e que outros países do norte europeu fizessem o mesmo. Isso continuou até 2007, quando explodiu. A dívida se tornou excessiva e os preços das casas entraram em colapso, e então tivemos uma recessão mais profunda. Isso foi seguido por um curto período de tempo em que a política fiscal foi a principal fonte de demanda. Em 2011, isso foi interrompido porque os chineses pararam de depender das exportações e basicamente mudaram a economia para um enorme boom de investimentos, que foi impulsionado por uma expansão de crédito.

Valor: Os países emergentes também se endividaram, certo?

Wolf: O Brasil é um exemplo disso, assim como a Índia. E, no mundo desenvolvido, os países que estavam tomando dívida pararam de emprestar tanto. Isso enfraqueceu a demanda maciçamente e a China ajudou, mas não o suficiente para compensar o buraco fiscal no mundo desenvolvido. Então, para dar sustentação à demanda no mundo desenvolvido, a política monetária teve que se tornar incrivelmente agressiva. O objetivo principal é manter algum crescimento do crédito e a bolha impediu um completo colapso das dívidas, em uma espécie de fenômeno massivo de falências, que vimos pela última vez na Grande Depressão. Então, a política monetária foi usada para impulsionar o crescimento do crédito porque a demanda global subjacente estava fraca. Eu não consigo citar todos os motivos para essa fraqueza, mas um deles foi a desigualdade e agora temos o envelhecimento, que afeta profundamente a demanda por investimentos. De qualquer modo, o resultado é que usamos o crescimento do crédito para impulsionar a economia global até 2007. Depois da bolha de crédito no mundo desenvolvido, usamos o crescimento do crédito na China e em algumas economias emergentes, além de algumas políticas fiscais e, mais importante, as taxas de juros extremamente baixas, que permitiram algum crescimento do crédito e possibilitaram que evitássemos uma grande onda de falências dos setores privado e público. Um colapso da dívida, essencialmente. Então, sim, a minha visão é que desde os anos 90, na realidade, nós temos sofrido com um ciclo em que ou temos uma grande bolha de crédito em algum lugar, ou temos uma demanda fraca no mundo. E, como eu não espero que estas condições mudem, estou bem pessimista em relação ao crescimento da demanda na economia global como um todo ao longo dos próximos anos.

Valor: E o senhor espera que a política monetária continue acomodatícia?

Wolf: Eu não espero nenhuma mudança nisso. O evento mais significativo em relação a isso é o fato de que o Fed teve que começar a afrouxar a política monetária em um momento em que os juros nem chegaram a passar dos 2,5%, que é um nível incrivelmente baixo em um ciclo de expansão. Então, o crescimento subjacente da demanda está secularmente fraco e o crescimento do crédito mascarou isso por algum tempo, mas infelizmente o crescimento do crédito não é uma solução permanente. De fato, ele deixa uma grande dor de cabeça depois que acaba, porque no fim, além da demanda fraca que já tinha no começo, fica uma dívida excessiva, que enfraquece ainda mais a demanda. E é aqui que eu acho que estamos agora. Não há solução fácil para isso, mas eu acredito que a combinação de uma política fiscal mais agressiva e uma redistribuição [de renda] feita de maneira inteligente é parte da solução. Isso vai acontecer? Não me parece muito provável no momento. Eu não consigo ver nada grande lá fora para mudar isso de forma dramática em direção a mais gastos, mais demanda, mais consumo e mais investimentos. Não há nada em nenhuma das economias globais realmente grande que, para mim, pareça indicar uma mudança neste cenário generalizado de taxas de juros bem baixas, dívidas excessivas, fraca demanda por investimentos e o protecionismo que esse tipo de situação tende a criar.

Valor: Qual sua expectativa para a economia global no ano que vem?

Wolf: Eu provavelmente espero algo parecido com este ano, que parece uma espécie de ‘novo normal’. Há várias razões profundas para a desaceleração global generalizada. Ao longo dos últimos anos, depois de 2016, houve uma forte recuperação que agora desacelerou. Podemos ver que a China está basicamente em desaceleração, o que é muito importante. O estímulo fiscal nos EUA está no passado e não há mais nada tão grande em termos de estímulos lá. Na Europa há problemas óbvios, especialmente nas economias voltadas para a exportação. O Brexit vai acontecer no ano que vem, ou pelo menos a discussão vai continuar a criar várias incertezas. Há incertezas globais também, qualquer que seja o resultado do acordo comercial entre EUA e China. Então, não consigo ver nada que leve as grandes economias a se saírem muito melhor no ano que vem. A única coisa que me faz ter um pouco de otimismo é que a Europa teve desempenho muito fraco, então pode ter um desempenho um pouco melhor, ou pelo menos não tão ruim. Mas no geral eu vejo mais do mesmo: um crescimento global relativamente fraco, mas nenhum desastre.

Valor: O senhor espera uma desaceleração nos anos seguintes ou espera que este “novo normal” permaneça?

Wolf: Eu acho que há uma chance razoável de que conseguiremos manter o ritmo de crescimento atual, que está relativamente fraco, no ano que vem e no seguinte. Há uma possibilidade de que, se houver uma mudança fundamental na política, em direção a uma renovação das certezas políticas, de fortalecimento do sistema de comércio, e coisas assim, de que haja alguma recuperação. Mas eu acho que há motivos estruturais, tanto na política quanto nos fundamentos econômicos, para que esperemos que o cenário atual de políticas monetária e fiscal continue. Por exemplo, eu não vejo uma disparada dos investimentos chineses, que elevariam significativamente as exportações de países como a Alemanha. Eu acho que o grande boom de investimentos da China está lentamente chegando ao fim agora e isso afetaria muito o resto da economia global. Eu não vejo outro grande boom de commodities na China. Isso é muito importante, é claro, para economias emergentes, como o Brasil. Essas são coisas estruturais. Então eu esperaria, se tivermos sorte e não fizermos uma grande bobagem, que sustentaríamos os níveis de crescimento que temos visto no último ano, mais ou menos. Pode ser um pouco melhor, mas não mudará de maneira fundamental.