Por Marta Watanabe – Valor Econômico

A frustração com o desempenho da receita tributária federal nos últimos meses colocou em discussão a arrecadação e sua histórica elasticidade-PIB maior que 1, pela qual o recolhimento de tributos cai proporcionalmente mais quando o PIB se contrai e cresce mais quando o PIB sobe. Dentro do governo federal já há quem veja mudanças estruturais na economia que podem ter afetado ao menos parte dessa relação.

Para analistas, as mudanças estruturais de fato aconteceram, seja porque o país reproduz uma nova organização da economia global ou por conta do longo período de recessão, e devem afetar a arrecadação não somente da União como dos Estados. Entre as mudanças estruturais mais evidentes eles citam a perda de participação da indústria na economia, a automatização de processos, o espaço que a comunicação de dados tomou da comunicação por voz e a migração de profissionais do grupo de empregados para o das pessoas jurídicas – a chamada pejotização. A recuperação da atividade, dizem, não deve reverter esses fenômenos, e a tributação dessa nova economia, apontam, demanda mudanças profundas na estrutura tributária (ver texto abaixo).

Para o economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), a recessão acelerou o processo de pejotização, motivado principalmente pela diferença de carga tributária entre o trabalhador empregado e a pessoa jurídica.

Appy dá uma ideia da diferença de carga para um profissional com receita de R$ 30 mil. Se for empregado de uma empresa do lucro real, diz ele, a carga tributária global é de praticamente R$ 15 mil, sem contar o Imposto de Renda (IR). Se a mesma receita de R$ 30 mil for retirada como pró-labore de uma empresa do lucro presumido, diz Appy, a tributação será de R$ 5,5 mil, já considerando a contribuição previdenciária pelo teto.

Também por conta da diferença na carga de tributos, explica Appy, muitos profissionais deixaram de ser autônomos e passaram a se prestar serviços como Micro Empreendedores Individuais (MEI). Essa mudança, avalia o economista, não necessariamente é revertida quando a atividade econômica se recupera.

Dados da Receita Federal mostram que em 2015 houve 2,34 milhões de pessoas que declararam Imposto de Renda (IR) como recebedores de lucros, dividendos e rendimentos de sócios ou como titular de microempresa. Em 2007 foram 1,09 milhão de pessoas nesse grupo. Nos oito anos, a fatia desses declarantes no total da renda tributável de IR de pessoas físicas cresceu de 7,3% para 10,6%.

Além da “pejotização”, diz Vilma da Conceição Pinto, economista do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), uma das evidências na quebra estrutural da relação receita-PIB é a própria composição do indicador. A economia experimentou uma mudança no peso dos diferentes setores. A indústria perdeu participação relativa frente aos serviços. Segundo dados do IBGE, a fatia da indústria no PIB caiu de 27,2% em 2010 para 21,2% no ano passado. No mesmo período participação dos serviços subiu de 67,8% para 73,3%. “Mesmo com o crescimento dos serviços, temos uma perda em termos de arrecadação, pois os serviços são proporcionalmente menos tributados que a indústria.”

Levantamento do Ministério do Planejamento com base em dados da Receita Federal e do IBGE mostra a diferença indicada por Vilma. No biênio 2015/2016 a indústria respondeu por 34,2% da arrecadação federal, com 21,8% de participação no PIB no período. O setor de serviços representou 73% do PIB do período e gerou 65,5% da arrecadação, em média.

Everardo Maciel, sócio da Logos Consultoria e ex-secretário da Receita Federal, lembra que no primeiro trimestre, o crescimento da economia foi puxado pelo setor agrícola, o que tende a ter pouco impacto na receita tributária, já que arrecada relativamente pouco. Ainda segundo o Planejamento, as atividades agropecuárias participaram com 5,2% do PIB e contribuíram com 0,27% da arrecadação federal no biênio 2015/2016.

Mas o impacto das mudanças estruturais não se restringe à receita da União. “Não considero plausível que a economia tenha atravessado uma crise tão grande sem algumas mudanças estruturais e muitas delas devem tender a diminuir a elasticidade da arrecadação em relação ao PIB”, diz o economista e secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, Hélcio Tokeshi

O fenômeno mais claro, diz Tokeshi, está na comunicação por voz, que migrou em maior parte para a de dados. “As ligações pelo WhatsApp, mais baratas que a do telefone convencional, e as teleconferências no lugar das reuniões que demandam viagens de avião ou carro são exemplos disso.”

Na indústria, diz o secretário de Fazenda, também se deu isso, na cadeia de fornecimento, na troca por um produto ou por um fornecedor mais barato ou mais próximo. “A economia mudou para se adaptar a uma recessão profunda e longa e o efeito disso no ICMS ainda é incerto”, diz ele, citando o imposto mais importante na arrecadação dos Estados.

Eduardo Tude, presidente da consultoria Teleco, explica que a mudança estrutural nos serviços de telecomunicação começou antes do WhatsApp tomar espaço da ligação telefônica. O avanço da comunicação de dados intensificou a redução de tarifas dada pela maior concorrência entre as operadoras de telefonia, o que fez a receita bruta global do setor crescer menos.

Nos últimos anos, com a recessão, o faturamento chegou a cair. “Mas a redução de tarifas já vinha acontecendo. Com a crise, as pessoas cortaram a linha de telefonia fixa e usaram mais a comunicação baseada na banda larga do que no pacote de dados da telefonia móvel”, diz Tude. Parte dessa mudança não deve se reverter, diz ele, com a recuperação da economia.

“Se a situação melhorar, a pessoa pode usar mais o pacote da dados, mas não voltará totalmente à comunicação por voz e nem religará o telefone fixo”, avalia.

Como efeito desse conjunto de fatores, aponta Tude, a participação dos serviços de telecomunicação no total arrecadado com o ICMS no país caiu de 11% em 2010 para 8,4% em 2016. Ele destaca ainda que 12 Estados elevaram ao fim de 2015 a alíquota do ICMS sobre serviços de telecomunicações, o que foi insuficiente para fazer avançar mais a fatia do setor no

recolhimento total do imposto no ano passado. Ele lembra que a mudança não afeta somente os Estados, mas traz efeito parecido no recolhimento do PIS e Cofins cobrados pela União sobre as receitas do setor de telecomunicações.

Para Everardo, a mudança estrutural não está relacionada à crise. “Há uma mudança global nas bases de arrecadação. No mundo inteiro a forma de comunicação mudou e há a quarta revolução industrial, com a inteligência artificial tomando lugar da inteligência humana.” O problema, diz Everardo, que também foi secretário de Fazenda nos Estado de Pernambuco e no Distrito Federal, é que as bases de tributação estão ultrapassadas. “Em 1988 os impostos únicos federais foram incorporados à base de cálculo do ICMS, imposto que incide hoje sobre telefonia, energia elétrica e combustíveis.

Esses setores representam hoje cerca de 40% do ICMS e são tributados com alíquotas estratosféricas, como se fossem serviços que estarão aí para sempre.” Na esfera federal, o ex-secretário chama a atenção para a tendência de redução no recolhimento das contribuições previdenciárias. “A folha de salários vai encolher por conta da redução de natalidade e da inovação tecnológica”, aponta. A mão de obra humana será menos necessária, ao mesmo tempo em que a expectativa de vida elevará a despesa com aposentadorias financiadas pela contribuição previdenciária. (Colaborou Rodrigo Carro, do Rio).