Valor Econômico
31/03/2020

Por Marli Olmos

Este é o momento para que a sociedade e os governantes pensem no que pode ser mudado para tornar melhor os centros urbanos

O arquiteto alemão Matthias Hollwich especializou-se em moradias para viver e envelhecer sem preocupações. Um dos seus projetos mais famosos está em Nova York. O Skyler é um edifício de cem andares cujo principal diferencial está nos espaços comuns para serem compartilhados entre os habitantes dos 600 apartamentos.

Ali, há escritórios para quem deseja dividir espaço para trabalho, um centro ecumênico para estimular a convivência na hora da oração, e até uma arquibancada instalada no meio desse arranha-céu. Dali as pessoas podem coletivamente contemplar um fim de tarde em Manhattan.

Urbanistas discutem como será a vida na cidade pós covid-19

Durante uma palestra, em São Paulo, há três anos, Hollwich disse que viver de forma inteligente pressupõe morar em bairros com boa oferta de transporte público e de serviços, como hospitais e supermercados. E deu um conselho para a plateia passar o resto dos anos bem: “Tentem sempre viver rodeados de gente”.

Com a disseminação da covid-19, os maiores centros urbanos do mundo foram forçados a seguir uma dinâmica oposta àquela para a qual foram planejados. Grandes capitais foram, há dias, esvaziadas para evitar o agravamento da contaminação, e os espaços públicos perderam a razão de ser.

Não há dúvidas de que isolamento social, principalmente em centros urbanos, é a melhor forma de proteger a população e evitar o colapso do serviço de saúde.

Ao mesmo tempo, a pandemia de efeitos devastadores também coloca em xeque o futuro das grandes cidades. Se, por um lado, um dos mérito das metrópoles sempre foi estimular a convivência humana, por outro, esses lugares são também o campo perfeito para uma perigosa propagação de surtos como o que estamos vivendo.

Buscar meios de evitar que megalópoles simplesmente “desliguem” e sua população, amedontrada, tenha que correr para se esconder de inimigos invisíveis tende a se tornar um dos maiores desafios urbanísticos do futuro.

No instante em que uma vacina surgir como a salvação para impedir a contaminação em massa, outro surto inédito poderá colocar novamente populações inteiras em confinamento.

A necessidade do distanciamento social em centros que nasceram para juntar gente já começa a se tornar assunto de discussão entre especialistas em urbanismo.

No Brasil, um jovem urbanista gaúcho, Anthony Ling, costumava escrever sobre os problemas que sufocam as grandes cidades, como o trânsito. Tanto que ele criou uma publicação digital chamada “Caos planejado”. Mas agora é o esvaziamento delas que incomoda.

Num artigo recente, Ling lembra que as grandes cidades sempre foram o epicentro de epidemias. Na gripe espanhola, em 1918, no Brasil, o maior número de casos foi na maior cidade da época, a então capital Rio de Janeiro. Cerca de 15 mil dos 900 mil habitantes do Rio morreram vítimas da gripe. Em São Paulo, o surto matou 1% da população, que somava 500 mil pessoas. Naquela época, 17% dos habitantes dos brasileiros moravam em centros urbanos. Hoje já são mais de 80%, segundo dados do IBGE.

Cidades foram planejadas para uma vida coletiva. É em metrópoles como São Paulo e Nova York que acontecem os maiores eventos, os maiores shows e a vida noturna é intensa. E, por mais que a tecnologia permita estarmos sempre conectados, existe uma necessidade humana de viver em conjunto.

 “A vida na cidade sobreviverá ao coronavírus?”, escreveu há poucos dias Michael Kimmelman, crítico de arquitetura do jornal “The New York Times”.

A história mostra que nem sempre todas as soluções estão num remédio. Amanda Mc Clellend, integrante da Federação Internacional da Cruz Vermelha, destacou, numa publicação, que foram as soluções básicas de saneamento que mais ajudaram durante a epidemia de cólera, na Inglaterra, em meados de 1800.

Em São Paulo, foi a gripe espanhola que levou a Assembleia Legislativa a aprovar, em 9 de abril de 1918, um código sanitário.

No Brasil, a covid-19 trouxe também à tona a preocupação com a população de baixa renda. É em morros como os que vimos desmoronar e matar dezenas de pessoas durante as chuvas de verão que muitos se aglomeram. Gente que não pode se dar ao luxo do home office.

Em seu artigo, Ling lembra que a natureza do trabalho da maior parte da camada da população de baixa renda a coloca entre a cruz e a espada: ou sai de casa e se arrisca a contrair a doença ou fica e perde o a ocupação com a qual garante o sustento.

Não há nada mais triste de se ver hoje no noticiário do que uma humilde senhora cuja casa não tem sequer uma torneira recebendo uma doação de sabão para lavar as mãos e evitar a contaminação.

Dados das Organização das Nações Unidas indicam que problemas de saneamento e falta de água potável podem causar até 80% das doenças em países em desenvolvimento. O surto de ebola na África, em 2014 e 2015, a febre amarela em Angola, em 2016, e a dengue no Brasil são apenas exemplos de desafios persistentes e que voltaram à discussão com o novo coronavírus.

No meio desse caos, no entanto, há quem já comece a prever que o coronavírus pode ter o mérito de ao menos levar ensinamento a gestores públicos.

Há poucos dias, a Citylab, publicação americana que discute os problemas das cidades, propôs uma discussão sobre provável transformação no transporte urbano. Num artigo chamado “Quando o mundo para de se mover”, a jornalista Laura Bliss diz que as autoridades têm muito a aprender com os impactos positivos que o descongestionamento de ruas e avenidas pode trazer para a saúde da população e até para a economia.

Ainda estamos no começo deste pesadelo, mas também de um período do qual é possível tirar lições. É uma boa hora de a sociedade e os governantes aproveitarem o isolamento para fazer uma lista do que pode ser mudado para tornar as cidades melhores quando a tempestade passar.

Marli Olmos é repórter especial